Este ensaio é resultado de uma chamada para compor uma roda de conversa sobre a realização de pesquisas antropológicas junto à cientistas pertencentes à “mesma casa” que nós, isto é, à mesma instituição de ensino. Convocada pela antropóloga e docente Soraya Fleischer, a roda de conversa reuniu cinco pesquisadoras, três mulheres e dois homens, vinculadas ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília que realizavam pesquisas com outros pesquisadores da instituição sobre diferentes temáticas, mas tendo comum entre si a reflexão sobre a formação e atuação de cientistas. O objetivo da roda de conversa era promover reflexões para a pesquisa de cada participante, como também identificar padrões e especificidades de se realizar pesquisa no “próprio quintal.”
No meu caso, a minha pesquisa é sobre a ciência psicológica, mais especificamente sobre a formação de psicólogos-psicoterapeutas no Brasil e sua pouca atenção para as demandas de pessoas negras, a maioria da população brasileira. Para isso, acompanhei o funcionamento de um serviço de psicoterapia e grupo de estágio para pessoas negras, que chamarei aqui de Mocambo, para preservar o anonimato. Através de observação participante e entrevistas entre abril e dezembro de 2023 na Clínica-Escola da universidade, identifiquei a dificuldade para publicizar o conhecimento gerado em campo por conta do racismo imposto pela instituição contra o projeto. Mas como lembra a tradição brasileira de antropologia das instituições e das práticas de poder, as instituições não são entes transcendentais, mas geradas por relações de poder e geridas por sujeitos e suas subjetividades.
Isto posto, portanto, a minha contribuição para roda de conversa foi tensionar, logo de saída, essa ideia constituinte do encontro de que fazemos pesquisa “em casa” ou “no próprio quintal,” visto que, em campo, eu e meus interlocutores, éramos lembrados que aquele não era o nosso lugar. Dessa forma, aponta o caráter constituinte das relações raciais nessas dinâmicas, haja vista que eu e meus interlocutores somos pesquisadores negros, enquanto todos os membros da instituição eram pessoas brancas. Diante disso, relatar os racismos vividos poderia gerar represálias contra o projeto, mas ao mesmo tempo fere minha ética antirracista enquanto pesquisador. É sobre este dilema que o presente ensaio se debruça.
Quando Soraya propôs a ideia, logo me veio à mente algo latente em minha pesquisa: o amargor do anonimato. Nesse sentido, apresentar uma dissertação sem contextualizar, ou seja, territorializar, racializar e nomear violências e as interlocutoras, seria como apresentar uma comida sem prato, sem utilizar de especiarias tradicionais deste bioma a fim de agradar papilas gustativas avessas ao sabor da feijoada, mas aficionadas por cassoulet.
Embora tenha sido um tema de reflexão no planejamento da pesquisa, não imaginava os sabores que viriam a complexificar o desenvolvimento da pesquisa e da apresentação desta comida ao público, não só na recepção dos renomados chefs que irão avaliar meu trabalho, mas sobretudo na consideração das cozinheiras com quem dividi cozinha e, literalmente, me formei, além das possíveis repercussões azedas, politicamente falando, se eu servir a comida com todas as especiarias que julgo necessárias para um bom prato. Especiarias essas que foram coletadas da horta, na qual era frequente uso de agrotóxicos, algo observado e ingerido em campo—que inclusive me causou sintomas de intoxicação (CID F43. 1),[1] visto que trata-se de um veneno. A fim de situá-las, diria que a minha pesquisa de mestrado é sobre racismo, ciência e saúde mental na ciência psicológica. Parto do entendimento do racismo e do sexsimo enquanto estruturantes da colonização e da colonialidade, com atravessamentos na subjetivação e na saúde mental de pessoas negras e brancas, mulheres e homens, tendo a ciência como historicamente reforçadora das violências raciais e de gênero, mas que ao mesmo tempo possui potencialidades para a redução das desigualdades. Para isso, realizei trabalho de campo entre abril e dezembro de 2023 junto ao Mocambo, um grupo de estágio e serviço de psicoterapia para discentes negros da universidade, ou seja, para formação de graduandos em psicologia e para o atendimento de discentes negros de outros cursos. Trata-se de um grupo que funciona na Clínica-Escola da universidade, criado em 2017 após denúncias de estudantes negros a respeito do adoecimento no ambiente universitário, demanda essa que foi acolhida por dois psicólogos negros voluntários que passaram a oferecer atendimento psicoterapeutico e formaram um grupo de estágio. É importante sinalizar que fui um graduando formado pelo Mocambo e pela UnB, dessa forma me caracterizo como insider.
No Mocambo, tratando-se de um quintal que ajudei a construir, fantasiei uma rápida e fácil inserção, mas que na prática não se mostrou tão rápida, não por má vontade, mas pelo fato da coordenadora possuir muitas demandas e uma costumeira demora para responder mensagens de texto, identifiquei como uma questão geracional, já que ela tem mais de 65 anos e eu menos de 25. Algo contrastante se comparado à relação com a Clínica-Escola, que historicamente é tido como um ambiente excessivamente burocrático, com pouca vontade política, que se materializa na atuação da coordenadora e dos servidores e vice-versa. Embora o trabalho de campo tenha se iniciado em Abril, com o objetivo de acompanhar as reuniões de supervisão clínica do estágio, não foram poucos os percalços vividos nessa caminhada.
Percalços esses que se aparecessem de modo casual e não-sistemático, poderíamos nomear como dificuldades comuns a um trabalho de campo. Em conversa com Tiago, um dos supervisores do último semestre, discutimos como as vivências isoladas destes percalços poderiam significar qualquer coisa, mas é a partir da junção de coincidências que as coisas tomam forma. E é aí que entra uma característica sintomática do racismo à brasileira: a capilaridade e a insidiosidade. Tiago pontuou que durante o período na Clínica-Escola, revivia o que ele chamou de “entre o surto e a paranoia,” uma sensação de perseguição da instituição compartilhada entre os interlocutores, mas não configura uma paranoia justamente por essa percepção ser compartilhada.
Além das repetições percebidas por ele, algo mais importante é assinalar que essa percepção era compartilhada pelo grupo e por mim. Desde as dificuldades para agendar sala para supervisão, o tratamento infantilizado, as frequentes dificuldades para realizar atividades—como num evento aberto ao público para falar sobre racismo e saúde mental, em que a instituição recusou a divulgação pois “não teriam controle de quem entraria no prédio,” mas que em evento similar de temática de interesse da coordenadora, a divulgação foi feita. Retomando as anotações do diário de campo, rememorei que o convidado deste evento foi mal recebido e tratado no diminutivo pela mesma, algo aparentemente simples, mas enquanto psicanalista, logo percebeu a insidiosidade da linguagem.
Dinâmicas similares às vividas em 2017, quando os dois psicólogos voluntários fundaram o Mocambo e foram apresentar essa proposta à então coordenadora da Clínica-Escola, mas foram esnobados. Enquanto apresentavam a proposta, a mulher caminhava. Mas cenário que mudou quando uma nova coordenadora assumiu a Clínica-Escola e conforme aponta Antônio, um dos fundadores do Mocambo, era uma pessoa com vontade política, em que as dificuldades burocráticas rapidamente eram resolvidas.
Para além do cinismo da coordenadora atual se disponibilizando para tudo com um sorriso no rosto, mas na prática colocando empecilhos incontornáveis, as psicólogas técnicas da Clínica-Escola usavam e abusavam de normas, burocracias e da ética profissional a seus próprios interesses sob a capa invisível da instituição, o que, na visão de Tiago que, além de psicólogo, é graduado em direito e servidor público, diversas burocracias impostas não tinham fundamentos legais “o importante é que cole.” Ainda nesse diálogo, lembramos dos entraves em relação à minha pesquisa, em que fui retirado de campo em duas oportunidades e na segunda vez, mesmo após ter o aceite do grupo de estágio, do comitê de pesquisa e do colegiado da Clínica-Escola, sob a justificativa de “ser antiético uma pessoa não vinculada à Clínica-Escola estar ouvindo casos confidenciais,” além de citarem que eu estava lá como antropólogo e não como psicólogo. A saída sugerida era a de que eu prestasse serviços profissionais de atendimento psicoterapêutico para o público da Clínica-Escola, o que não configurava pacientes do Mocambo.
Esses fatos em si já me pareciam estranhos, mas relembrando a forma com que se deram, me dá um nó na garganta lembrar que em reuniões individuais com portas fechadas e em tom passivo-agressivo, questões de “ética” em pesquisa eram levantadas contra minha pesquisa por pessoas sem expertise no assunto, sob as seguintes falas literais “não sou da comissão de pesquisa, mas eu sou a coordenadora.” Em tempo, ainda questionou a qualidade da própria comissão de pesquisa e do colegiado por terem aprovado minha pesquisa:
Lucinda [coordenadora] aproveitou para rememorar o processo de avaliação pela comissão de pesquisa da Clínica-Escola, em que afirmou ter contribuído, pessoalmente, para a recusa da primeira avaliação—embasado numa resolução do CNS de ciências da saúde do século passado. Após as adequações realizadas por mim, a pesquisa recebeu parecer favorável e aprovada no colegiado, mas sem a presença de Mariana, pois a mesma estava de licença médica, o que parece tê-la deixado desconfortável e afirmou “Me assusta terem aprovado assim. Temo que eles não sabiam o que era exatamente” (EH MOLE? Tem uma comissão de pesquisa e várias pessoas no colegiado, inclusive doutores, mas ela jura que o aceite foi equivocado). Achou ruim o fato de eu ter solicitado ao vice-coordenador, Pedro, enquanto ela estava de licença, a inclusão da avaliação do meu projeto na seguinte reunião do colegiado, após a estranha demora na segunda avaliação. Então a questionei se em caso de licença da coordenadora, o vice-coordenador exerceria tal função “não é esse o funcionamento?” Ela afirmou que sim, mas que ele “não sabe como é o dia a dia da instituição.” E argumentei “bom, mas você é da comissão de avaliação em pesquisa?” ela me respondeu “eu sou a coordenadora.” Então, para justificar essa vigilância, afirmou que é o nome dela que “tá na reta, caso o Ministério da Educação ou o Conselho Regional de Psicologia virem realizar vistoria.” (Trecho retirado do diário de campo, 29 de setembro de 2023)
Como solução para o impasse ético, além da vinculação como voluntário, Mariana sugeriu que eu tivesse respaldo de algum docente do Instituto de Psicologia da universidade “pois a Clínica-Escola é vinculado ao IP,” ou só o fato de ser aluno de algum dos programas de pós graduação do IP já me respaldaria. O que me fez pensar sobre se de fato essa pesquisa era no meu próprio quintal ou se realmente eu era um insider no campo, ou melhor, se eu era visto como um. Se no início da pesquisa a minha graduação em psicologia neste mesmo instituto foi mobilizada como facilitadora para o desenvolvimento da pesquisa “ainda bem que ele é psicólogo,” esse fato foi rapidamente descartado e fui colocado como antropólogo “realizando escuta de casos da psicologia.” Rememoro então a categoria utilizada por Luciana Dias (2019), de ser visto como “quase-da-família,” “quase-psicólogo” ou seja, não faço parte da casa, logo esse quintal não me pertence.
Em tempo, sinalizo que compreendo essas dinâmicas não na qualidade de ataque pessoal contra mim, mas enquanto expressão de um sistema de opressão e manutenção de privilégios. Deduzo que tais dinâmicas também seriam materializadas de forma similar se outra pessoa com os mesmos marcadores sociais que eu se propusesse a realizar tal pesquisa.
Nesse sentido, o desafio que trago para essa roda de conversa é sobre como escrever e publicar esses dados. Como sinalizei no início, o tema do anonimato era algo latente em minha pesquisa e eu o deixei latejando com passar das semanas a partir de uma espécie de atenção flutuante com o objetivo de ser afetado. Foi sobretudo ao participar da IX Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia (ReACT), em Goiânia, que essa reflexão ganha contornos melhores definidos, tanto ao ouvir a conferência de abertura da minha amiga pessoal Ana Mumbuca, em que pude trocar mais nos corredores, quanto participar do Simpósio Temático (ST) sobre Saberes Psi, além de fofocar e dialogar sobre minha pesquisa com minha amiga Ana Clara Damásio, seja no ambiente do evento, nos bares, restaurantes ou até no quarto em que nos hospedamos.
Logo na conferência de abertura em que Ana Mumbuca falava sobre o fazer antropológico junto a populações tradicionais e na quase intrínseca divisão entre sujeito e objeto, discorreu sobre o que compreendi como ética, não enquanto ferramenta maleável, institucional e burocrática em prol da ciência, mas como um compromisso político para com quem se estabelece laços de pesquisa, que no meu caso, não era somente um laço de pesquisa, mas de amizade e gratidão anteriores ao campo. O compromisso exemplificado por Ana Mumbuca foi a respeito dos segredos acessados em campo, no sentido de que existem conteúdos que se caracterizam como grandes achados etnográficos, mas que se publicizados contribuem para a vulnerabilização do grupo. É neste dilema que me encontro, na encruzilhada entre publicizar o racismo vivido e anonimizar o campo ou nomear o importante trabalho do Mocambo em âmbito nacional no que tange à formação e atendimento racializado, mas abrindo mão de escrever sobre o racismo que sufoca e violenta o projeto e seus membros.
Logo após a conferência de abertura, eu, Ana Clara e colegas do PPGAS/UnB fomos a um bar experimentar pequi e beber cerveja. Como nem todos se conheciam e a antropologia era o que nos atravessava em comum, começamos a nos apresentar e falar sobre o que pesquisávamos. Afetado pela conferência de Ana Mumbuca, falei do meu tema e dessa dúvida a respeito do uso do anonimato ou não. Diante da minha dúvida e das justificativas para tal, recordo-me de Ana Clara Damásio comentar “nossa, amigo, você parece estar atravessado por duas éticas,” pois ao mesmo que deveria proteger as interlocutoras em primeiro lugar, a ética do profissional psicólogo prevê a não conivência com preconceito, discriminação racial e práticas profissionais antiéticas, cabendo denúncia formal. E, logo no dia seguinte, participando da segunda sessão do ST que era sobre saberes psi no encontro com a antropologia, um dos coordenadores, Arthur Leal, psicólogo, mas que também trabalha na antropologia, comenta de uma postura comumente contrastante entre psicólogos e antropólogos diante de fricções em campo “o pessoal da psicologia se coça para dar respostas e encaminhamentos, já o pessoal da antropologia se segura mais um pouco.”
Entretanto, a virada de chave veio em sessão de análise com o meu psicanalista. Justamente ao conectar e dar significado ao que foi vivido na ReACT e em campo, período em que ele já me acompanhava, e inclusive vivenciou um episódio do campo: era ele o convidado do evento que foi mal recebido e tratado no diminutivo pela coordenadora da Clínica-Escola. Se Ana Clara Damásio identificou a disputa entre duas orientações éticas, uma de pesquisa e outra profissional, incluo a terceira, citada por Ana Mumbuca: o compromisso ético antirracista.
Dessa forma, optei por manter o anonimato a fim de proteger as interlocutoras, mas com um sabor amargo, justamente porque isso pode expor e minar ainda mais o projeto, daria armas e colocaria um alvo nas costas do Mocambo. Ademais, escancarar o racismo vivido dificilmente geraria as consequências legais, muito pelo contrário, e como sempre lembrado por minha orientadora de mestrado Soraya, eu era o elo mais fraco nessa disputa institucional.
Nesse sentido, aponto que para fazer pesquisas é sempre necessário pensar sobre posicionalidades do pesquisador e das interlocutoras. Pesquisar com cientistas, psicólogas, brancas, pesquisadores em função burocrática, algo bastante comum, se caracterizou quase como uma experiência da tradição dos studying up (NADER, 2020), mesmo sendo legalmente da casa. Embora estivéssemos no mesmo quintal, eu e as interlocutoras éramos frequentemente lembradas de que aquela não era a nossa casa ou que não deveria ser.
Portanto, terei que me a ver com o amargor do anonimato. Embora as pesquisas sejam sempre contaminadas pela subjetividade do pesquisador, acredito que faz sentido abrir mão de determinados princípios para privilegiar o encontro e a responsabilidade, especialmente a partir de uma ética em termos de compromisso antirracista. No entanto, o princípio de nomear, racializar e contextualizar me parecem bastante alinhados à ética do fazer antropológico, mas que ganha novos contornos e dilemas quando o subalternizado faz uso da antropologia, ou seja, a relação hierárquica entre sujeito e objeto não é mais intrinsecamente determinada por uma dialética radical; no Brasil, a brancura vale mais que o respaldo científico.
Por fim, o agrotóxico presente na horta de fato queimou a minha língua. Mas antes que queime a minha língua do que as próprias cozinheiras que me ensinaram a cozinhar. E quem disse que a comida precisa ser servida num prato de porcelana? Para driblar o paladar acostumado com cassoulet e avesso à feijoada, posso usar uma cachaça de jambu como entrada para “abrir o apetite.”
Notas
[1] CID F43.1 é o código para o diagnóstico de Transtorno de Estresse Pós-Traumático na Classificação Internacional de Doenças. Pesquisadores mostraram associações entre racismo e o diagnóstico de TEPT (Carter, 2007).
Referências
CARTER, Robert. Racism and psychological and emotional injury. The Counseling Psychologist, 35(1), 13-105. 2007.
DIAS, Luciana. “Quase da família: corpos e campos marcados pelo racismo e pelo sexismo. Humanidades e Inovação, 16(1): 8-12. 2019.
NADER, Laura. Para cima, Antropólogos: perspectivas ganhas em estudar os de cima. Antropolítica – Revista Contemporânea de Antropologia, n. 49, 2020.