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Dona Cisterna

O monólogo a seguir foi escrito originalmente para o projeto teatral em andamento Dramaturgias da água e da seca, desenvolvido pelo Grupo Pavilhão da Magnólia, um grupo teatral com sede em Fortaleza, Ceará, Brasil. Baseado em 24 meses de trabalho de campo em Quixeramobim, Ceará, Nordeste do Brasil, o monólogo explora a dinâmica das relações homem-água no semiárida do Brasil a partir da perspectiva de uma tecnologia social[1] que transformou o acesso à água potável na região: a cisterna de placa.

Uma velha cisterna à esquerda está conectada ao telhado de uma casa por meio de um cano branco. A cisterna é cilíndrica com um topo cônico. É branco e cinza e mostra sinais de desgaste. Galinhas e patos andam em frente à cisterna.

No semiarido do Nordeste do Brasil, a cisterna de placa é usada para armazenar chuva e fornecer água potável para famílias no interior ao longo do ano. (Foto: Seigerman)

A cena começa na escuridão silenciosa. Do silêncio vem o som fraco da chuva caindo em um telhado de barro. À medida que a intensidade da chuva aumenta, o cenário torna-se iluminado para representar a chuva que cai. A sombra de uma cisterna de placa torna-se visível. Uma luz azul opaca ilumina o chão, tornando perceptível o contorno de uma mulher sentada no chão. A mulher está cercada por pedaços de cimento quebrados (dimensões: espessura 3-4 cm, largura máxima 40 cm, altura máxima 50 cm).[2] Embora os pedaços de cimento sejam pintados de branco, muitos estão rachados ou sujos. A mulher enverga uma camisola branca puída e toca pensativa nos pedaços de cimento que a rodeiam, mergulhada na reminiscência.

DONA CISTERNA: Já faz tempo que ninguém pega água de mim. Já estou velha, seca… esse inverno[3] choveu bastante, mas já não seguro essa água mais. Meu tempo acabou-se…

A iluminação se torna mais quente (tons de azul para rosa) à medida que a MADAM CISTERN continua.

DONA CISTERNA: Mas eu lembro das boas épocas, eu bem novinha, linda. Eu era branca, muito branca e todo anos, antes do inverno chegar, minha família passava cal para que eu ficasse ainda mais linda.

DONA CISTERNA se levanta do chão graciosamente, enquanto tira a camisola gasta para revelar um deslumbrante vestido branco.

DONA CISTERNA: Meu primeiro ano de vida foi 2003. Logo depois em fevereiro de 2004, sangrei pela primeira vez. Ah coisa boa, sangrar.[4] Eu, com um volume de 16.000 litro e cheiazinha. A chuva e eu—nós éramos a fonte de alegria da minha família. Era bom demais nessa época.

Eles diziam que foi o governo que me trouxe para cá, mas foi o povo. Minha família falava muito sobre a asa e de primeiro, imaginei um belo pássaro, me trazendo para cá. Mais tarde, entendi que a ASA não era um pássaro, mas um coletivo de organizações da sociedade civil. Articulação no Semiárido Brasileiro.[5] Ela me trouxe aqui para ajudar o povo do interior, onde faltam condições, mas onde nunca há falta de fé nem de pessoas trabalhadoras.

Eu nasci e me cresci em um buraco no chão, cavado à mão pela minha família e nossos vizinhos. Ainda me lembro das placas no chão, secando ao sol antes de serem colocados em minha estrutura feita de madeira e suor. Dois dias demoraram para me construir, dois dias sob o sol quente no finalzinho do inverno de 2003.

A primeira água que conheci foi água de pipa, mas era boa. Minha família a bebiam. O carro pipa me encheu até a metade, o que eu esperava que fosse suficiente para sobreviver ao meu primeiro verão e não secar antes de chegar as chuvas. Valha, o sol quente daquele verão… Toda semana, duas ou três vezes por semana, a senhora pegava água de mim. Ela usava um balde especial, que nunca tocou no chão, para tirar minha água. E cada vez, eu ficava com um pouco menos de água. No final do verão, eu estava secando, e com preocupação de que ficaria seca. Mas, graças a Deus, choveu e choveu bom em 2004. Compreendi pela primeira vez o que era sentir alegria. Havia uma fartura de água e de alegria.

A iluminação torna-se mais severa.

DONA CISTERNA: O pior ano? Foi 2015 para 2016… anos difíceis. De primeiro, quando a seca chegou e a água nos açudes acabou-se, eu ainda tinha água. Pouquinha, mas tinha. O suficiente para beber e talvez cozinhar um baiãozinho.[6] Arroz e feijão cozidos juntos para conservar a pouca água que tínhamos. Eu ouvia a senhora falando com seu marido que havia gente demais lá na cacimba, que foi cavada no chão do açude seco. A fila era interminável, a água acabando. Mas a cacimba segurou, graças a Deus… até o dia em que ela também secou e a comunidade teve de cavar uma nova cacimba… e mais tarde, outra… e outra… e outra.

E quando a chuva ainda não chegava, as pipas começaram a aparecer. Nossa outra salvação. Eu, fiquei com sede, com vontade dessa água doce que cai do céu. No tanto, eu não tinha outra para beber. Apenas da pipa. Não era ruim, mas também não era boa. E a mangueira era puro tormento. O pipeiro não me mostrou o menor carinho. Eles sempre me abriam com tanto cuidado, tanto amor. O pipeiro não. O pipeiro esse, não. Com uma violência me abria, me metia sua mangueira, enchendo-me apenas até a metade, se tanto. Eu sabia que o restante da água da pipa iria para outras famílias. Mesmo assim, fiquei triste. Eu me sentia violada, cheia de água salobra. Aliás, nem cheia. Minha sede nunca satisfeita.

Uma mulher baixa com uma camisa sem mangas com estampa de flores e shorts azuis busca água na abertura de uma cisterna cilíndrica cinza/branca usando uma corda azul quase invisível. A cobertura de cimento rectangular para a abertura está apoiada no topo em forma de cone da cisterna.

No interior do Ceará, Nordeste do Brasil, uma senhora pega água da sua cisterna com um balde e corda. (Foto: Seigerman)

E a senhora… uma sensação de desesperança se apoderava dela quando olhava para mim. Ela pegava minha água com o mesmo balde especial, mas agora com uma para alcançar as partes mais profundas do meu ser, para conseguir as últimas gotinhas até que a pipa aparecesse novamente.

DONA CISTERNA rasga seu vestido.

DONA CISTERNA: Minha maior rachadura apareceu nessa época, quando eu havia secado completamente e isso, em pleno inverno. Eu sentia a rachadura se desenvolver. Inicialmente, notei uma leve fraqueza, que atribuí à minha sede. Depois percebi que eu estava rachando por dentro enquanto me descamava por fora. Uma tristeza medonha tomou conta de mim e da minha família quando a rachadura saiu por fora. Eles me viram como eu era: ressecada e rachada. Eles não tinham as condições para me remendar logo e eu fiquei triste. Eu era seca… quebrada… inútil. Eu, que deveria segurar água para nossa casa, trazendo agora desespero.

DONA CISTERNA começa a consertar o rasgo em seu vestido, enquanto o som fraco da chuva começa. Ela pega um copo de água embaixo de um dos pedaços de concreto quebrados no chão.

DONA CISTERNA: Graças a Deus, sobrevivemos aquela época. A chuva voltou e eu provei sua doçura mais uma vez. DONA CISTERNA olha para o rasgo parcialmente consertado em seu vestido. Mas eu ainda estava rachada e não conseguia segurar água da cintura para cima. Minha sede não foi saciada, não. Minha família tentou me consertar várias vezes, colocando cola e cimento, mas eu continuava a vazar. Eu, com minha cicatriz da seca, não podia mais dar à minha família a segurança que lhes dava antes. Nunca mais experimentei o prazer de estar cheia daquela água doce e fina que cai do céu. Não sei se algum dia voltarei a me sentir assim. Minha família ainda pega sua água de mim e fica feliz durante a época do inverno. No entanto, a cada ano, à medida que o mês do novembro se aproxima, também volta a preocupação. Será que ela vai durar esse ano? Será que o inverno não vem?

MADAM CISTERN veste a camisola mais uma vez e volta para o chão, onde estava sentada no início da cena.

MADAM CISTERN: Ao longo dos anos, as chuvas vieram e não vieram. Eu saboreei a doce água da chuva e suportei os pipeiros e a água que eles traziam. E agora, minha família vai buscar água dos vizinhos, enquanto eu continuo seca e rachada. Ouço a senhora dizer que não tenho conserto e, com esperança em sua voz, ela fala que um dia eles me reconstruirão. Oro pelo dia em que voltarei a segurar água para minha família e lhes trarei orgulho e alegria.

Escuridão.

Anotações

[1] A tecnologia social é definida como o “Conjunto de técnicas e metodologias transformadoras, desenvolvidas e/ou aplicadas na interação com a população e apropriadas por ela, que representam soluções para inclusão social e melhoria das condições de vida” (ITS Brasil, “Tecnologia Social,” ITS Brasil, 2023, Acesso 22 julho 2023). De acordo com o ITS Brasil, a tecnologia social tem quatro dimensões: relevância social; conhecimento, ciência, tecnologia e inovação; educação; e participação, cidadania e democracia.

[2] As dimensões são o padrão para as placas usadas na construção de uma cisterna de placa de 16.000 L de acordo com o Programa Nacional de Apoio à Captação de Água de Chuva e Outras Tecnologias Sociais de Acesso à Água do Governo Federal (Programa Cisternas, “Modelo da Tecnologia Social de Acesso À Água Nº 01: Cisternas De Placas de 16 Mil Litros,” Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Acesso 22 julho 2023)

[3] No Ceará, Brasil, o termo “inverno” refere-se à quadra chuvosa e o termo “verão” é usado frequentemente para se referir à estação seca are used to refer to the dry season. No interior, esses termos populares são mais usados para descrever o padrão de chuva de um determinado ano e muitas vezes não combinam perfeitamente com as definições técnicas usadas pelo Governo do Estado: pre-estação (dezembro a janeiro), quadra chuvosa (fevereiro a maio) e estação seca (junho a novembro).

[4] No Ceará, o termo “sangrar” é usado para descrever o ato de transbordar de uma fonte de água, como um açude ou cisterna.

[5] Articulação no Semiárido Brasileiro é uma rede de organizações da sociedade civil, incluindo organizações não governamentais, movimentos sociais, sindicatos rurais e associações de agricultores que “defende, propaga e põe em prática, inclusive através de políticas públicas, o projeto político da convivência com o Semiárido” (ASA, “Sobre Nós – História,” Acesso 22 julho 2023). Em 1999, a ASA desenvolveu o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) com o objetivo de melhorar o acesso à água potável no semiárido brasileiro por meio da construção de cisternas domiciliares para a captação de água de chuva. O Programa começou a receber recursos federais a partir de 2003, durante o primeiro mandato do presidente Lula. Entre 2003 e 2018, foram construídas 929 mil cisternas de primeira água no Semiárido Brasileiro, enquanto durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro (1º de janeiro de 2019 a 31 de dezembro de 2022), foram construídas cerca de 42 mil cisternas (Madson Euler, “Governo Bolsonaro construiu pouco mais de 42 mil cisternas,” 31 janeiro 2023, Empresa Brasil de Comunicação, Acesso 22 julho 2023).

[6] Baião de dois (diminutivo: baiãozinho) é um prato típico do interior do Nordeste do Brasil feito de arroz e feijão cozidos juntos.

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