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De Tirar Mel no Mato à Criação de Abelhas no Nordeste do Brasil

“Isso,” explicou Chico Filho, gesticulando para a verdejante e florida Caatinga que nos cercava, “é o pasto das abelhas.” Chico Filho, um agente de extensão estadual e ávido apicultor, estava refletindo sobre as mudanças na percepção e ações dos pequenos agricultores em relação à Caatinga, a ecoregião biodiversa única do Nordeste do Brasil caracterizada por arbustos, árvores espinhosas e desmatamento contínuo. O zumbido fraco das abelhas acompanhou nossa conversa enquanto Chico Filho conduzia um trabalhador rural (e colega apicultor) e mim por um caminho pela Caatinga até um dos apiários na Fazenda Normal. [1] Naquele momento, eu disse para Chico Filho que eu achava seu uso da palavra pasto para contrastar o cuidado com o gado e as abelhas bastante astuto. Foi a primeira vez que ouvi um apicultor descrever a vegetação que as abelhas forrageavam em busca de pólen e néctar dessa forma. Ao mesmo tempo, enquanto o gado também pasta nos arbustos da Caatinga durante a quadra chuvosa, “o pasto” normalmente se refere à forragem cultivada para alimentar o gado durante a estação seca. Apesar de vacas e abelhas compartilharem arbustos durante o inverno, a pecuária—uma prática agrícola principal na região—promove o desmatamento da Caatinga para fornecer pasto no verão para o gado. Por outro lado, a apicultura tem promovido pequenos agricultores a se tornarem defensores da conservação da Caatinga. Esses processos divergentes de produção de “pasto” suplicam valores diferentes relacionados à manutenção da integridade da Caatinga. Para ajudar as abelhas a produzir mel, os agricultores devem agir como cuidadores da Caatinga.

Um apicultor, com macacão, está em uma clareira de uma floresta verde e arbustiva, característica da Caatinga.

Chico Filho aponta árvores específicas da Caatinga enquanto caminhamos em direção a um dos apiários da Fazenda Normal. (Foto: Autor)

Embora a apicultura em pequena escala possa contribuir para a conservação florestal, reflorestamento e práticas agroecológicas (Patel et al., 2021), se há uma relação causal é menos conclusivo (Chanthayod et al., 2017). No entanto, reflexões de apicultores no sertão do Ceará, Nordeste do Brasil, indicam que, pelo menos para alguns, a apicultura cultivou um maior entendimento das consequências negativas do desmatamento e do uso de agrotóxicos para facilitar a agricultura e a pecuária, levando o apicultor a agir de forma mais consciente para conservar as áreas florestais. Nos últimos trinta anos, essa mentalidade cresceu com o influxo da apicultura em pequena escala e da produção de mel no Ceará, que foi acompanhada por assistência técnica fornecida por agências governamentais e organizações não governamentais. Como parte desse processo, os métodos tradicionais de coleta de mel de colmeias na Caatinga foram amplamente substituídos pelo cultivo de abelhas em colmeias artificiais de madeira. Neste post, eu exploro como a adoção de métodos contemporâneos de apicultura por antigos meleiros (caçadores ou coletores de mel) no sertão do Ceará promoveu amplamente uma maior conexão entre as abelhas e as pessoas que coletam o mel dessas.

Os Meleiros

Em todo o mundo, as práticas de forrageio e consumo de mel podem ser rastreadas até os primeiros hominídeos (Crittenden, 2011). No Nordeste do Brasil, os meleiros forrageavam mel exclusivamente de meliponíneos (abelhas sem ferrão) nativos até a introdução da Apis mellifera ligustica, coloquialmente conhecida como a abelha italiana, na década de 1950. No Ceará, o forrageio de mel diminuiu em popularidade com o surgimento da apicultura no início do século XXI.[2] Durante entrevistas sobre a experiência de tirar mel do mato no passado, os apicultores raramente mencionaram o encontro com meliponíneos. Em vez disso, eles compartilharam histórias de rostos inchados e mortes ocasionais devido a picadas de abelhas enquanto forrageavam mel das colmeias da floresta de abelhas africanizadas, um híbrido da mais dócil A. m. lingustica e a abelha melífera mais agressiva das planícies da África Oriental (A. m. scutellata).[3] Vestidos de bermudas, chinelos e, às vezes, uma camisa de manga curta, os homens (e, com menos frequência, as mulheres) normalmente usavam um cupim como fonte de fumaça para defumar as abelhas para fora de suas colmeias. Então, os meleiros espremiam o mel dos favos cerosos em um balde com a mão. Larvas, sujeira, suor e qualquer outra coisa que estivesse na mão do meleiro seria adicionada à mistura.[4] Um meleiro que virou apicultor, Rogério, me disse que seu olho ficou inchado e fechado por dias após uma busca por mel. Quando perguntado por que ele se colocaria em tal perigo para tirar mel, ele respondeu que era principalmente por necessidade—o mel era uma fonte de alimento essencial para sua família. Ao mesmo tempo, ele simplesmente gostava de mel e do ato de tirar mel do mato. O mel era um alimento básico para todos os ex-meleiros com quem conversei, enquanto alguns também notaram que vendiam mel extra, e às vezes a cera, por um pequeno lucro. Hoje, os apicultores colhem mel principalmente para lucro, pois o mel não desempenha mais o papel vital de subsistência que desempenhava no passado.

Relembrando sua experiência como meleiro, Rogério observou que nunca considerou realmente os perigos e as consequências ambientais associados à coleta de mel do mato. Sem acesso ou conhecimento de macacão, por exemplo, o uso de roupas de proteção para forragear nunca passou pela sua cabeça. Ele também não se deu conta da destruição do ecossistema local para o qual contribuía como meleiro. Árvores inteiras eram frequentemente cortadas, sacrificadas por uma única colmeia. Outras vezes, a colmeia inteira era removida, impedindo que as abelhas continuassem a viver e a se desenvolver no lar que haviam estabelecido. Para Rogério e outros meleiros, uma maior consciência do impacto ambiental de suas práticas como meleiro foi desenvolvida durante a transição de meleiro para apicultor. No entanto, alguns ex-meleiros explicaram que eventualmente começaram a cortar apenas parte da colmeia para preservar a integridade da colônia, ilustrando como a introdução da apicultura não foi necessária para que todos os meleiros desenvolvessem maior consciência ambiental.

Entrelaçamentos Abelha-apicultor

A apicultura chegou ao assentamento federal onde Rogério mora em 2004 na forma de um projeto patrocinado pelo governo por meio do Projeto Dom Helder Câmará (PDHC).[5] Por meio do PDHC, e como um coletivo, Rogério e outros assentados receberam caixas de abelhas iniciais (uma unidade de demonstração), uma casa de mel, macacões e assistência técnica. O projeto de apicultura, em conjunto com o aumento de acesso a outras fontes de alimentos e dinheiro por meio de programas governamentais, ajudou a mudar o foco da coleta de mel para Rogério de principalmente subsistência para lucro. Ao mesmo tempo, sua experiência como apicultor mudou muito a compreensão do Rogério sobre seu papel como membro do seu ambiente: “Percebeu que rentável, realmente não é só rentável. É pensar na vida, né? […] É a história de preservar a natureza, né? Sim, na verdade, o solo e o meio ambiente no conjunto, em geral. E também trabalhar toda essa questão com os devidos cuidados, né? Sim, porque você não está produzindo só para você. Você está produzindo para vender alguém.” Enquanto “o mercado” permeia a sua motivação para ter mais cuidado na produção de mel como apicultor, Rogério sente que essa responsabilidade de cuidar do meio ambiente está principalmente a serviço do florescimento mútuo tanto dos humanos quanto das abelhas.

A maioria dos meus entrevistados observou que eles sentem maior responsabilidade pelas abelhas como apicultores do que como meleiros. De uma perspectiva pós-humanista, os apicultores são “praticantes interespécies”–em vez de “pecuaristas intensivos”—entrando em encontros e relações descentralizadas baseadas na confiança com as colônias de abelhas que eles cuidam (Nimmo, 2015a: 193). A apicultura é literalmente isso, a arte de manter as abelhas—manter as abelhas contentes em manter suas colmeias nas caixas de madeira criadas para alojar uma colônia e promover a produção de mel. Em grande parte, isso envolve ajudar a garantir que as abelhas tenham os recursos nutricionais necessários para sobreviver. Durante uma boa estação chuvosa, as árvores floridas da paisagem da Caatinga (o “pasto,” como Chico Filho as chamou) fornecem o pólen e o néctar necessários para que as abelhas produzam comida suficiente para si mesmas e mel extra, que se torna o mel coletado pelos apicultores. A colheita do mel normalmente ocorre durante a quadra chuvosa e no início da estação seca. À medida que a estação seca avança, os apicultores tomam decisões sobre como responder ao acesso cada vez menor das abelhas companheiras às flores e, portanto, aos nutrientes.

Um apicultor em um macacão branco segura um defumador. Um outro apicultor em um macacão amarelo segura uma moldura de cera com abelhas no lado direito. Uma caixa de abelha aberta está na frente dos dois apicultores.

Um apicultor local observa uma das suas caixas de abelhas com a assistência de um técnico em Quixeramobim, Ceará. (Foto: Autor)

Esse cuidado é essencial, pois uma colônia de abelhas abandonará sua caixa em tempos de escassez (por exemplo, durante o verão, quando potenciais fontes de pólen se tornam mais distantes) em busca de uma fonte de nutrientes para sobreviver. Uma estratégia comum para apicultores durante o verão é fornecer às colmeias xarope simples feito de água misturada com açúcar como nutrição suplementar. Embora isso mantenha as abelhas em suas colmeias, o “mel” produzido não é verdadeiramente mel, mas sim um xarope simples mais viscoso, que os apicultores não colhem para vender. Recentemente, alguns apicultores fizeram a transição dessa fonte de alimento artificial para fornecer às abelhas mel da estação de colheita anterior ou para promover a floração de uma árvore específica, a jurema preta (Mimosa tenuiflora), por meio de irrigação. Essa prática foi desenvolvida por um apicultor especialista, professor e doutor em apicultura de Limoeiro do Norte, Ceará. A manutenção de abelhas também envolve a colaboração dos apicultores na proteção das colmeias de possíveis invasores, incluindo formigas. A construção do suporte da colmeia, bem como o ajuste do tamanho do furo por onde as abelhas entram e saem da colmeia dependendo da estação, são duas salvaguardas que os apicultores praticam: durante a estação seca, quando as colônias estão mais fracas, os apicultores também auxiliam suas abelhas companheiras na proteção da colmeia, diminuindo o diâmetro do furo por onde as abelhas entram e saem da colmeia.

A Agência Coletiva de Abelhas

Apesar dos esforços dos apicultores para regular as abelhas que residem em seus apiários, as abelhas mantêm uma agência coletiva que transcende as caixas que abrigam suas colmeias. Muitos dos apicultores com quem conversei tinham uma tendência a falar sobre “a abelha,” referindo-se à abelha rainha. No entanto, a abelha rainha e sua colônia agem como um coletivo que vai além das compreensões modernas do indivíduo para manter uma colmeia próspera (Nimmo, 2015b; Preston, 2006). A abelha (a colônia) que ocupa uma caixa de abelha também não está estagnada. Em vez disso, uma abelha rainha pode deixar uma caixa com parte ou toda a sua colônia quando a colônia está se tornando muito populosa ou, como mencionado acima, quando os recursos são escassos. No caso do primeiro, uma parte da colônia fica para trás e uma nova abelha rainha é criada. Apicultores no Ceará aprenderam a tirar vantagem da mobilidade das colônias de abelhas por meio do processo de multiplicação, durante o qual parte da colônia é extraída e colocada em uma nova caixa de abelhas, para promover a criação de uma nova abelha rainha, enquanto a abelha rainha original continua a presidir a outra parte da colônia dividida. Passando de meleiro para apicultor, muitos moradores rurais no sertão cearense se tornaram mais intencionais em como cuidam do ambiente local e mantêm “o pasto” para as abelhas que produzem o mel que colhem. No final das contas, porém, e ao contrário do gado mais facilmente confinado em terras de pasto, as abelhas são capazes de decidir continuaram a colaborar—residir na caixa de abelhas mantida para elas—ou optaram por sair do acordo com o apicultor.

Anotações

[1] A Fazenda Normal é uma fazenda de 1.507 hectares de propriedade e administrada pelo Serviço Estadual de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATERCE) para apoiar pesquisas e treinamentos relacionados à agricultura, pecuária e apicultura no interior do Ceará, Brasil. Embora os apiários na Fazenda Normal sejam principalmente para fins educacionais, o mel produzido é colhido e vendido. Chico Filho também mantém um apiário privado perto de sua casa em um município vizinho e produz cera.

[2] Nenhum dos apicultores que conheci em 2024 que eram meleiros no passado continuou a prática, mas sim praticava exclusivamente a apicultura. No total, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 18 apicultores atuais em Quixeramobim e Choró, Ceará, 16 dos quais eram meleiros anteriormente. Além disso, foram realizadas entrevistas informais com outros apicultores, muitos dos quais tiraram mel do mato no passado, durante visitas apiárias e colheitas de mel.

[3] Vários dos apicultores com quem conversei, muitos dos quais já foram meleiros, observaram que desde a década de 1980 as populações de meliponíneos selvagens diminuíram drasticamente. Também observando o provável impacto da introdução de agrotóxicos nas populações de meliponíneos, vários apicultores enfatizaram o papel que a perda de habitat por desmatamento desempenhou na eliminação efetiva dos meliponíneos selvagens. Um apicultor que trabalha como técnico de extensão para o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR) explicou que o habitat dos meliponíneos é muito mais limitado do que o das abelhas africanizadas, as primeiras preferindo ocos de árvores e as últimas dispostas a construir uma colmeia em quase qualquer lugar (correspondência pessoal, 17 de julho de 2024).

[4] Vários meleiros disseram que às vezes usavam urina para remover o mel pegajoso das mãos enquanto coletavam mel do mato. Se o processo de extração fosse realizado na floresta, esse resíduo também poderia entrar na solução de mel.

[5] Lançado em 2002 pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, o PDHC faz parte da estratégia do governo federal para reduzir a pobreza extrema em áreas rurais, apoiando agricultores familiares para aumentar a produção e adquirir conhecimentos e habilidades úteis (Morais et al., 2017).

Agradecimentos

Obrigado aos apicultores com quem trabalho no Ceará por compartilharem seus conhecimentos, experiências e mel. Além disso, obrigado a Alex Rewegan pelo feedback perspicaz.


Referências

Chanthayod, S., Zhang, W., & Chen, J. (2017). People’s Perceptions of the Benefits of Natural Beekeeping and Its Positive Outcomes for Forest Conservation: A Case Study in Northern Lao PDR. Tropical Conservation Science, 10, 1940082917697260. doi:10.1177/1940082917697260

Morais, J. A. d., & Callou, A. B. F. (2017). Metodologias participativas e desenvolvimento local: a experiência do Projeto Dom Hélder Câmara no assentamento Moacir Lucena*. Interações (Campo Grande), 18.

Nimmo, Richie. (2015a). Apiculture in the Anthropocene: Between Posthumanism and Critical Animal Studies. In H. A.R. N. Editorial Collective (Ed.), Animals in the Anthropocene: Critical Perspectives on Non-human Futures (pp.177-199). Sydney University Press.

Nimmo, Richie. (2015b). The BioPolitics of Bees: Industrial Farming and Colony Collapse Disorder. Humanimalia, 6(2), 1-20.

Patel, V., Pauli, N., Biggs, E., Barbour, L., & Boruff, B. (2021). Why bees are critical for achieving sustainable development. Ambio, 50(1), 49-59. doi:10.1007/s13280-020-01333-9

Preston, Claire. (2006). Bee. London: Reaktion Books.

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