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Da Hashtag ao Direito ao Ar Interno de Qualidade: Uma Breve História do Movimento #covidisairborne

Isolada durante o primeiro ano da pandemia de Covid-19, comecei a seguir no Twitter (plataforma/rede social agora chamada X) alguns cientistas que estavam dedicando parte de seu tempo para compartilhar informações sobre prevenção de doenças. Dessa curiosidade pessoal surgiu um interesse em uma disputa que acontecia entre tuítes, curtidas e retuítes: a Organização Mundial da Saúde havia publicado um “fact-checking” afirmando que a Covid não era uma doença aerotransportada.[1] Negar a relevância da transmissão aérea do SARS-CoV-2 foi visto como um erro por alguns naquele momento, em 28 de março de 2020, e teve um alto custo para a imagem pública da organização.

Twit from WHO about COVID-19 and airbone

Twit do OMS que diz: “Covid-19 is NOT airborne” (Covid-19 não é aerotransportada).

 

Neste ensaio, baseado em parte da minha pesquisa de doutorado, busco elaborar sobre como as interações no Twitter desempenharam um papel importante na disputa científica em torno da transmissão da Covid. Usando a hashtag #covidisairborne como uma pista hiperlinkada (Leitão e Gomes, 2017), naveguei por diferentes espaços online e offline, como plataformas de mídia social, podcasts, vídeos, webinars ao vivo, newsletters, páginas da web e um laboratório de química atmosférica na Califórnia. Ao seguir esses cientistas no Twitter, pude perceber que sua atividade online envolvia interagir com usuários de mentalidade semelhante e compartilhar seu conteúdo, o que começou a revelar uma rede internacional de usuários com o mesmo objetivo: lutar pelo reconhecimento da via aérea como relevante para a transmissão da Covid.

Cada protocolo de prevenção para a doença era baseado em ideias sobre como ocorre a transmissão. Mesmo sem que soubessem, todas as decisões partiam da interpretação de um “fato científico.” Se um espaço público tinha sinais no chão para que as pessoas mantivessem uma distância de dois metros entre si, ou se uma escola estava implementando barreiras de plástico entre os alunos, eles estavam mirando as gotículas provenientes das bocas das pessoas, partículas pesadas que seguem uma trajetória balística em direção ao solo. Se o uso obrigatório de máscaras PFF2 estava em vigor dentro de um hospital, o objetivo era prevenir a transmissão por aerossóis. Aerossóis são pequenos sistemas que consistem em partículas (como vírus) dentro de um material que pode flutuar no ar (como gases). Eles podem flutuar muito além de dois metros, até mesmo através de continentes, como a areia do deserto do Saara pode ser encontrada em todo o mundo. Então, cada vez que um protocolo de prevenção da Covid era adotado em algum lugar, ele era baseado em uma forma de perceber o contágio da doença.

No entanto, os aerossóis na transmissão de doenças são controversos. A hipótese mais aceita defendia que os bioaerossóis são gerados mecanicamente durante “procedimentos geradores de aerossóis,” como a intubação, portanto, precauções contra transmissão aérea deveriam ser tomadas apenas durante esses procedimentos específicos em hospitais e clínicas. Durante a emergência do SARS-CoV-1 em 2003, diferentes resultados dos surtos de SARS em cidades distintas foram posteriormente atribuídos à forma como a transmissão foi entendida e tratada (Campbell, 2006): locais onde precauções contra transmissão aérea foram tomadas tiveram cadeias de transmissão menores. O conceito do “princípio da precaução” era evocado: quando há incerteza sobre o nível de risco, as estratégias de prevenção devem ser as mais protetoras disponíveis.

A posição oficial da OMS nos primeiros meses da pandemia de SARS-CoV-2 focava na transmissão por gotículas. Ela recomendava a limpeza das mãos e superfícies e o distanciamento social como a principal forma de prevenir o adoecimento, como pode ser visto no tweet de “fact-checking,” que se tornou um símbolo da negação da transmissão por aerossóis. Até a escrita deste texto, embora a posição da OMS sobre o tema tenha mudado, o tweet não foi corrigido ou removido.

Embora não houvesse informações conclusivas sobre a transmissão do vírus na época, o tuíte afirmava que a Covid não era transmitida pelo ar como se este fosse um fato inegável, sem dar qualquer espaço para discussão. Como discutido por Latour e Woolgar, “um fato é reconhecido enquanto tal quando perde todos os seus atributos temporais e integra-se em um vasto conjunto de conhecimentos edificados por outros fatos” (1986, p. 100). No entanto, a informação que estava sendo corrigida não era apenas não completamente incorreta, mas era derivada de uma declaração da própria OMS, onde a possibilidade de transmissão aérea durante certos procedimentos intra-hospitalares era considerada e precauções contra aerossóis eram recomendadas. Então, embora a OMS estivesse dizendo ao público que a covid absolutamente não era transmitida pelo ar, ela também dizia que poderia ser situacionalmente transmitida pelo ar (Greenhalgh et al, 2022), mas muitos cientistas discordavam sobre quais seriam essas situações.

O que começou com cientistas respondendo ao tuíte e discutindo a posição oficial sobre transmissão rapidamente se transformou em um movimento que surgiu com a “contra-hashtag” #covidisairborne, reunindo cientistas e cidadãos de todo o mundo para discutir, planejar estratégias de advocacy e até publicar juntos. Apesar das diferenças, aqueles que eu percebia como parte do movimento compartilhavam uma mesma lógica, que se traduzia em valores centrais (como a defesa do princípio da precaução), crenças (a certeza da importância da transmissão aérea) e objetivos (o reconhecimento da via de transmissão e o fim da pandemia), como em um “coletivo de pensamento” nos termos do médico e filósofo da ciência Ludwick Fleck (1935[2010]). Se definirmos o “coletivo de pensamento” como a comunidade das pessoas que trocam pensamentos ou se encontram numa situação de influência recíproca de pensamentos, temos, em cada uma dessas pessoas, um portador do desenvolvimento histórico de uma área de pensamento, de um determinado estado do saber e da cultura, ou seja, de um estilo específico de pensamento (p. 82).

A Falta das “Evidências de Alta Qualidade”

Após a publicação do tweet, em março de 2020, trinta e seis cientistas se reuniram em uma videoconferência no Zoom, organizada por Lidia Morawska, uma física polonesa-australiana que trabalha com o tema da qualidade do ar, junto a representantes da OMS, para expressar suas preocupações sobre a minimização da transmissão aérea do SARS-CoV-2. A chamada não ocorreu como esperado, pois a posição do órgão permaneceu a mesma e os cientistas foram acusados de “não ter evidências suficientes” para apoiar a transmissão por aerossóis. Em um artigo publicado três anos depois, esses cientistas revelaram o que aconteceu nos bastidores, até mesmo anexando as trocas de e-mails após a primeira reunião, e argumentaram que a posição da OMS foi responsável por muitas das vidas perdidas por não seguir as evidências atuais na época nem o princípio da precaução (Morawska et al, 2023).

Nesses e-mails e em muitas das declarações seguintes, a OMS argumentou sobre a falta de evidências de transmissão significativa do SARS-CoV-2 por aerossóis fora do contexto dos PGAs. A palavra evidência era crucial: aqueles que argumentavam a favor da transmissão por gotículas como a principal fonte de propagação do SARS-CoV-2 eram geralmente médicos de doenças infecciosas e epidemiologistas, e usavam os princípios da medicina baseada em evidências para diferenciar o que seriam “evidências de alta” e “baixa qualidade.”[2] Na “pirâmide da hierarquia de evidências,” revisões sistemáticas e ensaios clínicos randomizados estão no topo, enquanto estudos de laboratório e relatos de casos estão próximos à base. No contexto da Medicina Baseada em Evidências (MBE), estudos de caso são considerados “anedóticos” e, portanto, não deveriam ser tratados como evidência relevante.

No entanto, os cientistas do #covidisairborne não consideravam os ensaios clínicos randomizados como o padrão-ouro para toda questão científica. Em vez disso, entendiam diferentes metodologias como evidências mais válidas sobre o tema da transmissão de doenças, como análises dedicadas de casos e estudos mecanísticos. Eles até rejeitavam as conclusões tiradas de ensaios clínicos randomizados, pois esses não seriam capazes de capturar realmente o que era necessário para entender a transmissão da doença, já que os cientistas não podiam propositalmente infectar pessoas com SARS-CoV-2. Então, se a metodologia de “mais alta qualidade” não podia projetar estudos de boa qualidade em seus próprios termos devido à natureza da questão científica, a meta-análise chegava à conclusão de que não havia “evidência de alta qualidade” para apoiar a transmissão aérea. Para os cientistas da MBE, isso demonstrava uma falha na hipótese da transmissão aérea; para os cientistas do #covidisairborne, demonstrava uma falha na MBE.[3]

Dessa perspectiva, havia evidências suficientes na época para considerar a covid como transmitida pelo ar. Apenas alguns desses 36 cientistas eram da área médica: a maioria era de químicos, físicos e especialistas em dinâmica de fluidos, então sua perspectiva sobre boas evidências era muito distinta do outro grupo. Não era apenas uma “batalha” sobre a transmissão da doença, mas, no final, eles estavam debatendo o que poderiam ser consideradas evidências válidas e o que deveria ser tratado como tal.

Após idas e vindas nas comunicações, o “grupo dos 36” elaborou uma carta pública dirigida à comunidade de saúde global e conseguiu 239 cientistas para assiná-la. A carta chegou à imprensa mainstream em todo o mundo e transformou o tema antes técnico em uma questão pública. De acordo com Douglas e Wildavsky (1983), a fronteira entre ciência e política se torna borrada diante da dissidência científica sobre o risco. Quando a controvérsia se estabelece, a questão se polariza e se politiza, trazendo os cientistas para a arena pública como oradores e ativistas.

Embora não houvesse líderes diretos no movimento #covidisairborne, a discussão orbitava em torno de cientistas-chave que usavam a plataforma para disseminar informações, chamar a atenção das autoridades públicas e organizar estratégias, como Kimberly Prather, Jose Jimenez, Don Milton, Trisha Greenhalgh e Linsey Marr. Muitos artigos foram publicados em importantes revistas científicas abordando os principais argumentos e demandas, o que deu legitimidade ao movimento público, além da concessão de centenas de entrevistas e comentários pelos cientistas, liderando a narrativa científica na mídia tradicional.

No entanto, o movimento se fortaleceu porque muitos não-cientistas (como eu) estavam interessados em participar dessas discussões, amplificá-las e contribuir para o objetivo principal. Essa aproximação entre cientistas e cidadãos em uma questão relevante e urgente contribuiu para a construção de uma sólida rede de ativistas, que chegou até a ter não-especialistas escrevendo artigos científicos em revistas de alto impacto junto aos principais cientistas do campo quando eles haviam feito contribuições significativas (como descobrir aspectos históricos enquanto pesquisavam o tema por conta própria). A hashtag se tornou um símbolo para a comunidade, sendo até usada nas descrições de perfis de mídias sociais para identificar sua posição sobre o tema.

Assim, o que poderia ter sido uma discussão técnica tornou-se uma discussão muito acalorada: aqueles que estavam envolvidos a viam como um despertar coletivo para uma revolução científica e/ou como um ponto de virada para uma mudança de paradigma, à medida em que químicos, engenheiros e outros especialistas em dinâmica de fluidos desafiavam o campo biomédico sobre a transmissão de doenças. Muitos associaram a resistência ao reconhecimento da via aérea a uma resistência à semelhança dos aerossóis com a teoria dos miasmas (Randall, 2021). A negação da transmissão aérea era entendida como a razão pela qual o mundo inteiro estava experimentando ondas constantes, novas variantes com maior transmissibilidade e números chocantes de mortes ao redor do globo.

A OMS eventualmente reconheceu a relevância da transmissão aérea em ambientes fechados, mas ativistas e pesquisadores argumentam que as mudanças da OMS foram muito sutis e silenciosas, limitadas a algumas páginas em seu site, com uma lacuna na comunicação ampla do novo entendimento sobre a transmissão. A introdução de recomendações sobre ventilação interna, por exemplo, não estava necessariamente relacionada a um reconhecimento da transmissão generalizada do vírus por aerossóis, mas sim mantinha a lógica de espaços mal ventilados como contextos “específicos” onde o vírus poderia ser transmitido. Até a publicação deste ensaio, a organização não havia lançado nenhuma campanha revisando sua posição ou usando palavras tão diretas quanto aquelas na verificação de fatos daquele tweet, afirmando “Covid é transmitida pelo ar.” Para aqueles que exigiam essa mudança, o reconhecimento tímido não foi suficiente.

Conclusão

Embora a crise da Covid ainda seja oficialmente uma pandemia em curso, com centenas de milhares de novos casos diários em todo o mundo e um número sólido de mortes relacionadas ao vírus, a atenção pública ao tema caiu drasticamente. À medida que o “novo normal” solidifica a experiência pós-pandêmica de lidar com múltiplas infecções por covid como se não fossem mais prejudiciais para pessoas vacinadas, o tema deixou de ser tão relevante—e, como consequência, o movimento #covidisairborne também perdeu espaço.

A comunidade #covidisairborne (que também se sobrepõe à autointitulada “comunidade consciente da covid” no Twitter) migrou seus esforços principalmente para dois tópicos principais: Covid Longa e qualidade do ar. Covid Longa é um termo para uma gama de sintomas e doenças relacionadas às sequelas que permanecem ou surgem após a fase aguda de uma infecção por SARS-CoV-2, e muitos dos ativistas que demandam pesquisa e tratamento adequados são pacientes afetados por diferentes graus ou formas deste quadro. Enquanto tentam encontrar alívio para sua condição, eles defendem a mitigação da transmissão, já que quase não há protocolos em vigor ao redor do mundo para conter a propagação do vírus.

O tópico da qualidade do ar foi introduzido cedo no movimento, já que a mitigação coletiva da transmissão aérea inclui precauções com o ar interno, e também porque muitos dos cientistas vocais eram cientistas do campo da qualidade do ar. A conferência de 2024 da Sociedade Internacional de Qualidade do Ar Interno e Clima foi chamada de “Sustentando a Revolução do Ar Interno: Aumente Seu Impacto,” e grande parte do debate ao longo da conferência era voltado para como seguir aproveitando o destaque que o “momento da covid” trouxe para o campo. O foco na qualidade do ar foi incorporado ao movimento #covidisairborne como uma forma de exigir soluções não apenas para a crise da Covid, mas para outras doenças respiratórias e futuras pandemias. Com estratégias de qualidade do ar interno, como monitoramento, ventilação e filtração, poderíamos ter uma redução significativa na transmissão de doenças respiratórias.

O caso do movimento #covidisairborne serve para ilustrar como as publicações e interações no Twitter se tornaram um campo para disputas científicas contemporâneas, especialmente durante o período da pandemia de covid. A plataforma serviu como um espaço para cientistas, especialistas e cidadãos engajados desafiarem narrativas oficiais, compartilharem evidências e discussões e se organizarem para diversas ações, incluindo a construção de conhecimento científico de forma “tradicional,” como artigos em periódicos e livros. A controvérsia sobre a transmissão do SARS-CoV-2 também expôs fraturas e limitações do olhar da Medicina Baseada em Evidências para questionamentos científicos, especialmente em momentos de crise em Saúde, onde o tempo para a produção de consensos na Ciência é profundamente alterado pela necessidade de intervenções.

Notas

[1] Aerotransportada é uma tradução de “airborne” e diz respeito à transmissão pelo ar de uma partícula pequena, como um vírus, em uma partícula de gás que permanece suspensa no ar por mais tempo que uma gotícula, que tende a ir em direção ao solo.

[2] O mesmo argumento foi utilizado para descartar a necessidade de máscaras, como discuto no terceiro capítulo da dissertação. Alguns dos mesmos consultores da OMS publicaram uma revisão Cochrane sobre máscaras onde, apesar da conhecida dificuldade de avaliar a eficácia das máscaras através de ensaios clínicos randomizados, esses foram os únicos estudos considerados “evidência de alta qualidade,” o que os levou a escrever uma conclusão onde a eficácia das máscaras para prevenir doenças não pôde ser confirmada e que não havia “evidência de benefício” em usá-las.

[3] A recusa aos estudos randomizados “padrão-ouro” também foi utilizada para defender o uso de medicamentos do chamado “tratamento precoce,” como hidroxicloroquina e ivermectina com base em estudos observacionais. Rosana Castro qualifica o debate em texto publicado neste blog em 2023: “Hipócrates Contra Protocolos: Experimentos, Experiência e Medicina Baseada em Evidências no Brasil.”


Esta postagem foi curada pela Editora Colaboradora Clarissa Reche.

Referências

CAMPBELL, Archie. The SARS Commission interim report. 2004.

DOUGLAS, Mary, and WILDAVSKY, Aaron. Risk and culture: An essay on the selection of technological and environmental dangers. Univ of California Press, 1983.

FLECK, Ludwick. Genesis and development of a scientific fact. Chicago: Chicago University Press, 2010.

GREENHALGH, T; OZBILGIN, M; TOMLINSON, D. How COVID-19 spreads: narratives, counter narratives, and social dramas. BMJ, London, v. 378, 2022.

GOMES, L., LEITÃO, D. Etnografia em ambientes digitais: perambulações, acompanhamentos e imersões. Revista Antropolítica, n. 42, Niterói, p. 41-65, 2017. 

KLIMECK, B. #covidisairborne: produção e circulação de evidências sobre a transmissão da covid-19. 272 f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023.

LATOUR, B., & WOOLGAR, S. Laboratory life: The construction of scientific facts. Princeton university press, 1986.

MORAWSKA, L., BAHNFLETH,, W., BLUYSSEN, P. M., BOERSTRA, A., BUONANNO, G., DANCER, S. J., … & WIERBICKA,, A. (2023). Coronavirus disease 2019 and airborne transmission: science rejected, lives lost. Can society do better?. Clinical Infectious Diseases, 76(10), 1854-1859.

RANDALL, Katherine et al. How did we get here: what are droplets and aerosols and how far do they go? A historical perspective on the transmission of respiratory infectious diseases. Interface Focus, Cidade, v. 11, n. 6, p. 20210049, 2021.

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