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Conexões entre Saúde, Ciência e Tecnologia: O Que a Antropologia Tem a Ver?

A close-up photograph of cannabis leaves.

Ao conhecer os estudos sociais das ciências e das tecnologias, sobretudo as pesquisas na área da antropologia, percebi que portas se abriram, mostrando-me novas perspectivas e possibilidades de fazer ciência. Durante a minha experiência na pós-graduação, tenho buscado juntar as duas áreas que sempre me atraíram: a antropologia da saúde e os estudos sociais das ciências e das tecnologias.

Tenho, nos últimos anos, pesquisado mais especificamente a regulamentação de derivados de Cannabis para uso terapêutico no Brasil. Esse tema, que por si só já levanta questionamentos e opiniões calorosas, é permeado por controvérsias (Latour, 2012) que se relacionam principalmente ao lugar dessa substância na história nacional e internacional como droga e como medicamento. Para entender as controvérsias mais profundamente, resolvi realizar uma pesquisa em uma interface que privilegiasse os discursos sobre saúde pública e o fazer científico, entrando também, no caso brasileiro, a discussão sobre segurança pública.

Por ser droga e também medicamento, dependendo de quem ou de onde se fala, a Cannabis me pareceu um bom exemplo para pensar questões importantes. Uma delas é tensionar a ideia de uma Ciência neutra, com “C” maiúsculo, aquela que é feita “fora” da sociedade, alheia aos acontecimentos do mundo social e político. Outra questão, derivada da primeira, era pensar como os produtos científicos respaldavam decisões políticas na discussão e na disputa de sentidos em torno da regulamentação da Cannabis para uso terapêutico no Brasil.

Para isso, uma das minhas entradas de pesquisa foram os artigos científicos produzidos por médicos brasileiros que tinham a Cannabis ou algum de seus componentes como foco, publicados a partir de 2014. Esse ano foi um importante marcador na discussão sobre o uso terapêutico, visto que os primeiros casos sobre o uso do canabidiol, um dos derivados não psicoativos da Cannabis, começaram a ser divulgados na televisão e nas redes sociais, principalmente em grupos do Facebook. Além disso, foi em 2014 que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deu sua primeira aprovação para a importação de um produto terapêutico derivado de Cannabis. Minha ideia era entender se o número de pesquisas, ou seja, se o interesse dos pesquisadores da área biomédica tinha aumentado depois da circulação das histórias e posterior aprovação. Os números por si só não eram importantes, mas poderiam me dar pistas para entender o interesse dos cientistas pelo tema e quais os discursos seriam (re)produzidos nos artigos em questão.

Quando nos deparamos com o panorama histórico em torno da proibição da maconha no Brasil, podemos ver como a atuação da biomedicina se liga à questão, visto que foram os profissionais dessa área, historicamente legitimados a falar em nome da Ciência, que retiraram a substância dos manuais de medicina (Carlini, 2010) e passaram a associá-la ao risco e às doenças e perturbações morais e mentais. Nesse sentido, a própria história da proibição no Brasil mostra os profissionais da biomedicina como protagonistas no debate, já que esse evento foi perpetuado com a ajuda das produções científicas da época e com os discursos públicos dos pesquisadores em torno da questão (Saad, 2010). O que eu perceberia mais a frente é que a história se repetiria.

A ideia foi produzir uma cartografia de controvérsias (Venturini, 2012; Venturini et al., 2015) que se define como um conjunto de técnicas utilizadas para investigar disputas que se tornam públicas em torno de questões técnico-científicas. Nesse sentido, Latour (2000), ao seguir cientistas e engenheiros, propôs que analisar controvérsias de modo mais próximo pode nos mostrar os motivos e crenças por trás daquilo que é posto. Desse modo, entender a produção científica biomédica em torno do uso terapêutico de derivados de Cannabis tornava-se importante principalmente pela questão pública da regulamentação das substâncias. Tal regulamentação ia além da discriminação do que seria considerado droga e o que seria um medicamento, mas dizia respeito principalmente ao acesso à saúde pelos cidadãos. No Brasil, o acesso à saúde é garantido pela Constituição Federal de 1988, que diz que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado. Por isso, não fazia sentido as diferentes alegações de que não se poderia usar de forma medicamentosa qualquer substância. Além disso, o uso off label já existia e era uma realidade no país. Então, o que estávamos discutindo, afinal?

O que pude perceber, analisando não só os artigos produzidos na biomedicina, mas também as audiências públicas da Anvisa, é que o que estavam discutindo não era só se o canabidiol, em um primeiro momento, e a Cannabis e seus derivados, em outro, poderiam ser usados como medicamentos, mas era, na verdade, uma discussão sobre regulamentação de substâncias específicas que passavam a ser nomeadas, descobertas e adjetivadas. O canabidiol parecia estar do lado bom, um produto de uma “ciência boa.” Por não ser considerado um psicoativo, tinha um lugar privilegiado, não era visto como um risco à saúde e à sociedade. O THC, outra substância derivada da Cannabis, parecia ser uma descoberta daquela “ciência ruim,” que não deveria ser cultuada. É uma substância psicoativa, logo, fazia mal. Vale aqui ressaltar que, além dos diretores da Anvisa, temos também a área técnica da instituição, responsável por fazer um levantamento das evidências científicas para que os diretores possam tomar decisões embasadas. Na época da primeira votação, por exemplo, a área técnica foi favorável a regulamentação do canabidiol, enquanto os diretores foram contrários. Na reunião, falou-se muito da falta e/ou da insuficiência de evidências científicas, apesar de já existir uma produção significativa sobre o tema. Mas como é medido isso? Como sabemos que temos evidências científicas suficientes?

O debate sobre o tema do uso terapêutico de derivados de Cannabis é bom para pensar saúde e processos científicos no Brasil. Isso porque todas as discussões sobre o tema acabam falando sobre Ciência, seja nas audiências na Anvisa ou na discussão sobre projetos de lei em torno da temática no Congresso Nacional (Senado Federal e Câmara dos Deputados). Nessas discussões, a Ciência é chamada a falar por meio dos especialistas no tema—a maioria deles da área da biomedicina. Os artigos científicos, por sua vez, costumam aparecer na justificativas dos projetos de lei, como uma forma de dar credibilidade e embasamento ao que é proposto. Ou seja, em todas as etapas do debate público acerca do acesso à saúde, a produção científica se faz presente.

Um dos pontos interessantes nessa discussão é como existem dois lados e dois discursos que se apresentam a todo momento e que dizem respeito a termos ou não evidências científicas suficientes sobre um possível uso terapêutico das substâncias derivadas de Cannabis. De um lado, temos os especialistas e os experts leigos (Epstein, 1995) que são a favor da regulamentação dos derivados de Cannabis para uso terapêutico no Brasil. Para eles, já existem evidências científicas suficientes sobre o uso medicamentoso dos componentes de Cannabis, então, não deveria haver espaço para proibição. Do outro lado, temos os especialistas e experts leigos que são contra a regulamentação. Nesse grupo, existem aqueles que não são totalmente contrários a qualquer uso medicamentoso e aqueles que acreditam que, caso o uso seja terapêutico, algumas exceções podem ser consideradas. Porém, para todos eles, ainda não existe evidência científica suficiente que justifique uma regulamentação de Cannabis para uso terapêutico no Brasil.

Nesse sentido, dependendo do seu lugar no debate, as evidências científicas podem ou não ser suficientes. Isso mostra como a Ciência e seus produtos são manejados por esses atores sociais. Como não existe um consenso sobre o que seria considerado como “evidência científica suficiente,” os atores em torno do debate instrumentalizam os produtos científicos para defender seu argumento. Atualmente, principalmente quando os projetos de leis são debatidos no Congresso Nacional, os especialistas da área biomédica são protagonistas. Eles são chamados a falar pelos deputados e senadores em nome da Ciência. Seja nos requerimentos ou antes de apresentarem algum pesquisador na audiência, esses políticos reafirmam que eles foram chamados para poderem mostrar o olhar da Ciência sobre o tema, para que, posteriormente, eles possam tomar uma decisão favorável ou contrária a regulamentação baseados nas evidências científicas. A ideia é que esses especialistas possam, por meio de suas falas públicas sobre o tema, afirmar se o uso terapêutico existe ou não e se deveria ocorrer um processo de regulamentação no Brasil. Os especialistas usam argumentos técnico-científicos para justificar seus argumentos contrários ou a favor de uma possível regulamentação.

O que é interessante nesse ponto é que há, a todo momento, uma disputa sobre as evidências científicas. Os artigos, ou seja, os produtos científicos, são jogados de um lado para o outro como justificativas para validar um ponto de vista. Isso mostra que a produção científica e os especialistas participam ativamente da política e do debate sobre saúde no país. Nesse sentido, é importante que a antropologia esteja atenta a produção científica e a sua participação na vida pública. Já sabemos que nenhuma ciência é neutra e produzida fora da realidade social, mas é importante olharmos de perto esses processos científicos que são pontos-chave para estabelecermos políticas de saúde e ciência no Brasil.

No caso da Cannabis no Brasil, é em nome da Ciência que o acesso à saúde é questionado. Para termos de fato uma saúde e medicina dignas de nossa confiança (Benjamin, 2023), devemos entender que a produção científica deve estar constantemente sobre escrutínio, pois ela é parte ativa e presente das decisões políticas em diferentes partes do mundo. A antropologia, como a ciência da diferença e ligada a causas sociais importantes, deve estar em alerta, realizando o seu papel de pesquisar e questionar processos políticos e científicos. A participação de cientistas nesses espaços deve ser analisada como um empreendimento que é profundamente político (Jasanoff, 1996a). Ao tratarmos de saúde, é importante levar em consideração que existe ciência na política e política na ciência (Jasanoff, 1996b).


Referências

BENJAMIN, Ruha. Viral justice: How we grow the world we want. Nova Jersey: Princeton University Press, 2022.

CARLINI, Elisaldo A. Pesquisas com a maconha no Brasil. Brazilian Journal of Psychiatry, v. 32, p. 53-54, 2010.

EPSTEIN, Steven. The construction of lay expertise: AIDS activism and the forging of credibility in the reform of clinical trials. Science, technology, & human values, v. 20, n. 4, p. 408-437, 1995.

JASANOFF, Sheila. Beyond epistemology: relativism and engagement in the politics of science. Social studies of science, v. 26, n. 2, p. 393-418, 1996a.

JASANOFF, Sheila. Is science socially constructed—And can it still inform public policy?. Science and Engineering Ethics, v. 2, p. 263-276, 1996b.

LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba, 2012.

LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp, 2000.

SAAD, Luísa Gonçalves. Medicina Legal: o discurso médico, a proibição da maconha e a criminalização do negro. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), v. 1, n. 2, p. 103-112, 2010.

VENTURINI, Tommaso et al. Designing controversies and their publics. Design Issues, v. 31, n. 3, p. 74-87, 2015.

VENTURINI, Tommaso. Building on faults: How to represent controversies with digital methods. Public understanding of science, v. 21, n. 7, p. 796-812, 2012.

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