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Freud Entre os Geneticistas

No final de 2022, eu estava aproveitando meu último semestre nos Estados Unidos antes de viajar ao Brasil para realizar trabalho de campo etnográfico. Passei as férias de outono na cidade de Nova York e usei meu tempo livre para ir a Downtown e dar uma olhada em livrarias. Eu estava procurando especificamente livros sobre psicanálise na que talvez fosse a cidade mais freudiana (a única?) dos EUA. Afinal, Nova York permanece até hoje um oásis freudiano dentro de um país que, em grande parte, abandonou a psicanálise e a substituiu pela terapia cognitivo-comportamental (TCC), a farmacologia, as neurodisciplinas e a autoajuda.

Após a publicação do DSM-III (década de 1980) e da Década do Cérebro (nos anos 90), a psicanálise americana foi enterrada – segundo muitos – “onde sempre pertenceu, no depósito das buscas obscurantistas pré-científicas por significados ocultos, ao lado de confessores religiosos e leitores de sonhos” (Zizek 2007: 1). Os departamentos de humanidades, antes vistos como lugares seguros para a psicanálise após sua expulsão das escolas de psicologia, também começaram a considerá-la uma impostura científica (parabéns, caro Sokal), um discurso falogocêntrico (obrigado, cher Derrida) e um péssimo recurso hermenêutico (thank you, Mr. Harold Bloom) que – para piorar a situação – não passava, em última instancia, de uma mera extensão secularizada do confessionário católico (merci beaucoup, Dr. Foucault).

Entrei em uma grande livraria independente depois de andar pela cidade por três horas. Eu já estava exausto de pedir repetidamente “livros sobre psicanálise” e esclarecer “não, não psicologia, mas psi-ca-ná-li-se”. Um funcionário perguntou se poderia me ajudar, ao que apenas murmurei “Psicanálise…?”. Ele fez uma pausa de alguns segundos: “Ah, psicanálise, claro, entre ciência e religião”. “Isso é o que eu chamo de bom atendimento”, pensei, “vim procurar livros e encontrei uma demarcação!”. Para minha decepção, a resposta do funcionário foi mais sobre a localização física do que sobre taxonomias do conhecimento, já que a estante de Psicanálise estava de fato colocada entre as estantes de Ciência e Religião.

Shelves full of books in a NYC bookstore with signs atop designating the contents of the bookshelves. To the left “science”, in the middle “psychoanalysis”, on the right “religion”.

A vida imita a arte, mas nas livrarias de Nova York, as estantes imitam a demarcação (Imagem do Autor).

II

A psicanálise desfruta de um status diferente na América Latina. Não é uma prática marginal, apesar da crescente influência (e influxo) da psicologia e psiquiatria americanas. Visite a maioria das grandes cidades latino-americanas e você encontrará psicanalistas em hospitais públicos, grupos de pesquisa, clínicas e universidades. Você os verá misturados entre humanistas – literatos, linguistas, filósofos e até matemáticos –, mas é provável que também os encontre ensinando psicopatologia, técnicas de entrevista clínica, psicologia do desenvolvimento ou supervisionando residências clínicas.

As bancas de jornal vendem versões em brochura dos livros de Freud e revistas de alto nível têm seções dedicadas à psicanálise. Em cidades como Buenos Aires ou São Paulo, psicanalistas são regularmente consultados, não apenas sobre subjetividade, saúde mental ou a vida amorosa, mas também sobre questões mais amplas de interesse público, que vão do impacto social da IA ​​ao cyberbullying, da guerra na Ucrânia às mudanças climáticas. Eles são considerados especialistas em temas relacionados à sua profissão, mas também intelectuais que “intervêm em questões alheias à sua área direta de competência profissional” (Plotkin & Visacovsky 2008: 150).

A revolving bookstand at a bus station in São Paulo holds multiple books by Freud. Among the other authors in the bookstand are Nietzsche, Tchékhov, and Agatha Christie.

Seção de livros de bolso em uma livraria de terminal de ônibus em São Paulo (Imagem do Autor).

É tentador ver a América Latina como um paraíso psicanalítico, mas esse quadro é matizado e em constante mudança. A América Latina seria apenas o último sobrevivente de um paradigma moribundo, ou a região seria uma paisagem terapêutica e psicanalítica alternativa a do Atlântico Norte? A maneira como moldamos nossa resposta se entrelaça com nossa geopolítica tácita do conhecimento. A abordagem diferenciada da América Latina à psicanálise seria uma anomalia histórica na progressão natural da ciência? Seria um sintoma do excepcionalismo exótico latino-americano? Não poderia ser nenhuma das opções acima?

Mikkel Borch-Jacobsen, coautor do Livre noir de la psychanalyse [1], acredita claramente na primeira opção. Para ele, países como Brasil e Argentina “hoje dão à psicanálise o mesmo crédito que os Estados Unidos nos anos 50 e 60”. Em 2005, Borch-Jacobsen previu que “o desaparecimento da psicanálise é inevitável. As gerações mais jovens de especialistas têm outras demandas do ponto de vista científico […] Os dias de Freud e suas teorias implausíveis estão contados” (Corradini, 2005). Vinte anos depois, nem a Argentina nem o Brasil repetiram o caminho americano.

Borch-Jacobsen previu um declínio causado pelo “avanço extraordinário das neurociências”, que demonstram como, “no campo da psique, é possível alcançar resultados surpreendentes em um tempo muito curto com outras terapias” (Corradini, 2005). Embora a TCC e a biopsiquiatria tenham de fato conquistado maior reconhecimento público e institucional, o mesmo aconteceu com as terapias New Age, a autoajuda e a cura religiosa pentecostal. Seria mais preciso dizer que a psicanálise agora compartilha o pódio. Ao contrário da profecia de Borch-Jacobsen, o pódio expandiu-se tanto para o lado da ciência quanto para o lado da religião e até abriu espaço para a magia e o senso comum (Csúri, Plotkin & Viotti 2022).

III

Cheguei ao Brasil em 2023 para realizar uma etnografia da Clínica Psicanalítica do Genoma, um espaço único onde psicanalistas colaboram com especialistas em genômica como parte de uma abordagem multidisciplinar para tratar pacientes diagnosticados com distrofias neuromusculares [2]. Essa colaboração começou após um encontro casual no início dos anos 2000.

Quase ao mesmo tempo em que O Livro Negro da Psicanálise estava sendo lançado, um momento fundamental estava acontecendo em São Paulo. Uma prestigiosa fundação cultural brasileira reunia proeminentes figuras intelectuais, científicas e culturais para discutir os desafios do Brasil no século XXI. A Dra. M, uma renomada geneticista, e o Dr. F, um proeminente psicanalista, estavam sentados lado a lado em uma das mesas redondas.

A história, corroborada por ambos os protagonistas, é a seguinte: a Dra. M mencionava os avanços esperados que a genética teria no diagnóstico e na explicação de doenças, o que poderia levar a um novo caminho preditivo para a medicina. O Dr. F, ele próprio médico, perguntou à Dra. M se ela acreditava no determinismo genético, “na relação biunívoca entre genótipo e fenótipo”, ao que ela respondeu: “De jeito nenhum! Quem lhe disse essa bobagem? Não existe determinismo entre genótipo e fenótipo. De fato, uma das nossas grandes questões é até que ponto nossos genes são afetados pela experiência do ambiente”. A conversa continuou. “Na psicanálise, também não acreditamos em determinismo”, disse o Dr. F, “entre causa e efeito, há sempre uma cisão, uma lacuna, e é aí que intervimos”. Então, a Dra. M assentiu: “Estamos interessados ​​em como algumas pessoas conseguem se proteger dos efeitos nocivos de uma mutação. É aí que o ambiente pode atuar e onde a psicanálise pode desempenhar um papel”.

Duas décadas após dessa conversa mítica, a Clínica Psicanalítica do Genoma já tratou quase 400 casos de Esclerose Múltipla, Esclerose Lateral Amiotrófica, Distrofia Muscular de Duchenne e muitas outras condições. A clínica enfrentou crises políticas, uma pandemia, uma quarentena subsequente, o corte de financiamento à ciência durante o governo Bolsonaro e até mesmo discretas “guerras científicas” de baixa intensidade. Psicanalistas lacanianos participaram de estudos junto com os cientistas, e alguns desses estudos até ganharam prêmios importantes em congressos internacionais de medicina e genética. Longe de ser uma reunião utópica fadada a uma vida passageira, essa colaboração tornou-se um projeto duradouro que reflete o horizonte brasileiro pós-neoliberal de saúde universal, ciência financiada pelo Estado e maior autonomia para pesquisadores brasileiros na experimentação de novas direções científicas e terapêuticas.

IV

Uma descrição densa da conversa entre a Dra. M e o Dr. F é um bom ponto de partida para compreender a ciência, a genômica, a saúde e a psicanálise em geral no Brasil.

Para começar, a Dra. M e o Dr. F compartilham uma mesa redonda onde nenhum deles tem autoridade especial. Eles falam como iguais em um fórum que aborda questões públicas de interesse nacional. Além disso, é o Dr. F, o psicanalista, quem questiona a geneticista, levantando preocupações sobre o determinismo (genético). Por outro lado, é a geneticista, a Dra. M, quem posteriormente concorda com a postura psicanalítica, referindo-se aos “fatores ambientais”. Indo mais além, o acordo mútuo sobre a existência de uma lacuna no determinismo prenunciou os parâmetros de sua futura colaboração, não baseada nem na fusão nem na absorção de um pelo outro, mas na manutenção de sua dissonância mútua.

Antes de os psicanalistas serem convidados para o projeto, os geneticistas tinham feito uma parceria com terapeutas cognitivo-comportamentais, que vem de um paradigma com maiores afinidades epistemológicas e metodológicas com as ciências da vida. No entanto, essa parceria, baseada na consonância epistêmica, não produziu resultados. Uma geneticista referiu como essa parceria “não deu certo: os pacientes estavam se sentindo muito pior e muitos interromperam o tratamento”. Isso contrastava claramente com a psicanálise: “Eu nem entendo bem o que os analistas fazem, mas de jeito algum dá certo, sim, e mesmo pode você conferir com os pacientes”. Seguindo Galison, o tratamento de distrofias neuromusculares força ambas as disciplinas a estabelecer linguagens de contato e sistemas de discurso que “estabelecem uma coordenação local apesar das diferenças globais”, mesmo quando “discordam sobre o significado do próprio processo de troca” (Galison 1997: 783).

V

Como podemos rotular essa incursão psicanalítica na medicina genômica? É mesmo ciência?

Segundo a aposta de Karl Popper sobre a demarcação científica, a psicanálise não atenderia aos requisitos mínimos de falsificação de sua própria teoria e, portanto, não poderia ser uma ciência. Até hoje, a psicanálise é considerada, em muitas partes do mundo, uma pseudociência, uma não-ciência e até mesmo uma anticiência; dependendo a quem você perguntar.

Na Clínica, os psicanalistas não estão tentando recuperar a credibilidade científica perdida de sua disciplina vinculando-se a um laboratório que ostenta “o título oficial de melhor ciência” (Hacking 1988: 290). Tampouco buscam validação científica, nem utilizam uma forma (mais) legítima de conhecimento científico para confirmar teses psicanalíticas; muito menos tentam atualizar seus métodos tomando-os emprestados da biomedicina. Em vez disso, eles veem a parceria como uma oportunidade de reinventar uma psicanálise vinculada ao contemporâneo, rompendo com aquilo que consideram como práticas psicanalíticas escolásticas, exegéticas e “cientofóbicas” amplamente disseminadas.

Em vez de se esforçarem para reinscrever sua disciplina no lado “correto” da demarcação científica, os psicanalistas estão criando um terceiro terreno no meio da separação radical entre ciência e não ciência. Não se trata de se tornar uma ciência ou de rebater os epítetos de pseudociência. Em vez disso, “ficar do lado da ciência”, “não ser uma não-ciência” ou “ajudar à ciência” são os significantes que circulam. Esse espaço intermediário de indeterminação não impediu que esse time híbrido de geneticistas e psicanalistas publicasse artigos revisados ​​por pares em periódicos de ponta, ganhasse prêmios científicos, obtivesse bolsas ou estruturasse um sistema multiprofissional de tratamento e encaminhamento. De fato, sua dissonância epistemológica mútua (“nem entendo bem o que os analistas fazem …”) parece ser a condição de possibilidade para sua eficácia pragmática (“… mas de jeito algum dá certo”).

Notas

[1] Editado por Catherine Meyer em 2005, O Livro Negro da Psicanálise: Viver e Pensar Melhor Sem Freud compila mais de 800 páginas de estudos empíricos e de arquivo com o objetivo de demonstrar a natureza fraudulenta, antiética e iatrogênica da psicanálise. O livro esgotou imediatamente na França e gerou uma série de controvérsias que atingiram até mesmo as esferas mais altas da política e da legislação francesas. Surpreendentemente, talvez não tenha sido traduzido para o inglês, entre outras razões, porque não era mais necessário nos países anglo-saxões: em 2005, as Freud Wars já eram coisa do passado, especialmente nos EUA.

[2] As distrofias neuromusculares são condições que afetam o nervo, o músculo ou a junção neuromuscular (onde o nervo se comunica com o músculo), causando principalmente perda de força, incapacidade e deformação. Elas têm principalmente uma base genética, seja ela congênita ou hereditária. O teste genético é uma etapa crucial para o diagnóstico, aconselhamento e tratamento.


Esta publicação foi organizada pelo editor colaborador Andra Sonia Petrutiu.

Referências

Corradini, L. (2005) ‘El psicoanálisis va a desaparecer’, dice Mikkel Borch-Jacobsen, La Nación (Setembro 15). https://www.lanacion.com.ar/cultura/el-psicoanalisis-va-a-desaparecer-dice-mikkel-borch-jacobsen-nid738572/

Csúri, P.; M. Plotkin & N. Viotti (2022) Beyond Therapeutic Culture in Latin America: Hybrid Networks in Argentina and Brazil. Routledge.

Galison, P. (1997) Image & Logic: A Material Culture of Microphysics. The University of Chicago Press.Hacking, I. (1988) The Participant Irrealist at Large in the Laboratory, The British Journal for the Philosophy of Science 39(3): 277–294.Plotkin, M. & S. Visacovsky (2008) Los psicoanalistas y la crisis, la crisis del psicoanálisis, Cahiers de LI.RI.CO 4: 149-163.Zizek, S. (2007) How to Read Lacan. W.W. Norton & Co.

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