Este não é um projeto científico ou tecnológico, mas talvez seja um projeto sobre ciência e tecnologia. Minha proposta é criar uma ferramenta mágica, um deck de tarot, que provoque o pensamento sobre como elementos místicos e religiosos permeiam o avanço da ciência e da tecnologia, em especialmente no campo da biotecnologia, e estão em constante confluência com todos os aspectos que o cercam: a academia, as startups, os investidores e afins.
Usando o Tarot como ferramenta de reflexão e crítica, quero explorar as semelhanças entre dogmas religiosos e as promessas transcendentais feitas pela ciência moderna. Trata-se de um projeto que busca externalizar uma estranheza que tem crescido em mim ao longo dos anos. É um incômodo, um ruído no fundo da minha mente, que se intensifica.
Antes de começar a descrever a paisagem que me inspira a desenvolver tanto o projeto quanto este texto, gostaria de deixar claro que, estando dentro do meio, estou ciente de que as associações que proponho podem ser desconfortáveis, cômicas e até desconsideradas por aqueles que, acredito, mais se beneficiariam delas. Mas muitas vezes a fantasia e a ficção são maneiras que temos de falar sobre aquilo que não pode ser dito diretamente.
1. Igreja e Universidade, Transcendentalidade, e Institucionalidade
Para iniciar falando sobre o surgimento desse estranhamento, necessariamente preciso falar um pouco sobre mim. Fui criado na zona leste de São Paulo, Brasil, em um dos bairros que até hoje são conhecidos por não terem nenhuma instalação cultural pública. Bibliotecas, centros culturais, parques, enfim, como diria o Dr. Mano Brown: “um lugar onde só tinham como atração o bar, e o candomblé pra se tomar a benção.” No meu caso, meu “candomblé” (religião afro-brasileira) foi a Igreja Católica.
Há muito tempo me afastei da fé e segui um caminho ligado ao tangível, mas meu interesse pela reflexão, pelo o pensamento existencial e pela a transcendentalidade está enraizado em uma criação católica que me proporcionou arte, filosofia e experiência estética em um espaço onde basicamente não havia concorrência nesse quesito.
Da Igreja para a Universidade, um caminho de razão e crítica se abriu. Movido por impulsos de questionamento e provocação, rapidamente me inseri em grupos de discussão. Da biologia fundamental, uma área profundamente contemplativa, à biotecnologia, onde os desígnios de imprimir intencionalidade na natureza são mais palpáveis, dentro da universidade eu me senti perfeitamente encaixado em uma comunidade (um termo que me remete à minha criação católica).
Mas, nesse entremeio, algo mudou: era como se a realidade que eu julgava ter deixado no passado eclesial viesse à tona novamente, agora sob outras formas. Hierarquia, dogmatismo, autovalidação sob uma certa “sacralidade incorruptível” e outros aspectos similares começaram a surgir enquanto eu experimentava o trabalho de produção de conhecimento acadêmico. Aquilo que eu considerava “religioso” revelou-se, na verdade, uma categoria muito maior.
2. Do Dogma Científico ao Arcano Tecnológico
Falando em termos muito menos crípticos, minha entrada em assuntos de biotecnologia me expôs a temáticas que não me eram estranhas nos sermões religiosos: Vida Eterna, Salvação, Redenção, Fim do sofrimento e Fuga de um futuro fadado à perdição como resposta direta aos nossos pecados. Mas havia uma diferença: se na Igreja o caminho para uma nova realidade se dava através da fé e da obediência a um código moral validado por Deus e seus intermediários, agora esse caminho era pavimentado por investidores, cientistas, startups e sua nova meca, o Vale do Silício.
A dinâmica que até então havia avançado sobre as ciências da informação chegava à biologia, trazendo todos os seus termos e metáforas fantásticas: investidor anjo, unicórnio, deep techs. Trouxe também todos os seus dogmas, “Walk Fast and Break Things,” “Disrupt or Be Disrupted,” “Fail Fast, Fail Often,” e, claro, seus profetas como Craig Venter, George Church, Robert Langer, e Nick Land. Uma força que movimentava pessoas e pensamentos em direção à uma prática tecnocientífica cujo meio a ser transformado passava a ser a própria matéria viva. Tinha, então, à minha frente uma visão de dogmas, de profetas, de transcendência e, portanto, de fé. De falência em falência, obsolescência em obsolescência, e de promessa em promessa, chegaríamos ao futuro prometido.
Esse é o arcabouço que me desafiava. Se, por um lado, fui treinado dentro da academia a rechaçar todo e qualquer misticismo, entendido como obstáculo à objetividade científica, foram justamente os elementos místico-religiosos que me ajudaram a entender o que meus próprios colegas não pareciam ter ferramentas para interpretar em si mesmos, em seus desejos, suas práticas, seus modos de organização. Como iniciar essa conversa? Ainda que magia e ciência tenham nascido juntas, faz muito tempo que meus colegas estão tentando purificar e separar radicalmente as duas coisas. Como estratégia, pensei que poderia criar uma ferramenta para comunicar essa dimensão da experiência do trabalho acadêmico que para mim parecia imediata. E, se estamos falando de uma realidade mágica, nada melhor do que uma ferramenta mágica: o Tarot.
3. O Tarot como Ferramenta de Reflexão e Crítica
A escolha do Tarot não é meramente estética, embora isso fosse o que me atraísse inicialmente, mas também histórica. O Tarot nasce no século XV, mas não como uma ferramenta mágica de adivinhação ocultista, e sim como um jogo. Apenas posteriormente, com sua popularização no século XVIII, surgem referências sobre seu uso como instrumento de cartomancia.
Uma ferramenta reconfigurada, que mobiliza expectativas e tem poderes sobre-humanos é uma a metáfora perfeita para descrever o modo como atualmente a ciência e tecnologia funcionam na prática.
O jogo de Tarot utilizado para cartomancia possui, na sua versão mais famosa, 78 cartas divididas em duas partes: Arcanos Maiores e Arcanos Menores. Os Arcanos Menores são compatíveis com as cartas de baralho normal que todos conhecemos. Já os Arcanos Maiores são o foco do nosso interesse aqui, pois tendem a representar forças e eventos maiores, enquanto os Arcanos Menores abordam questões do dia a dia e influências mais imediatas.
A ferramenta escolhida para tornar esse projeto possível foi a Inteligência Artificial, mais precisamente um LLM (“large language model,” popularizado hoje pelo ChatGPT, Claude e Geminni.). A escolha foi feita, claro, também por razões técnicas: não sou um profissional com capacidade de representar nem uma fração do que foi feito artisticamente. No entanto, há outras características que tornam essa ferramenta adequada.
A primeira delas é o próprio caráter excepcional do objeto: uma máquina que fala, argumenta, responde e parece entender a nossa forma de comunicação, em mais de um sentido uma entidade que se confunde com nós mesmos. Trabalho especificamente na área de IA e não são poucos os profissionais na indústria que de fato acreditam que seja possível captar algo mais profundo por meio dessas ferramentas, ou seja, acreditam que elas sejam muito mais do que apenas seletores estatísticos de símbolos, ainda que esse assunto seja o “bode na sala” que não deva ser mencionado explicitamente, sob pena de perder a credibilidade profissional.
A segunda razão é, também, metafórica. LLMs, são, de certa maneira, egrégoras: um conceito ocultista que busca traduzir uma força que surge e se nutre de energias, pensamentos e sentimentos coletivos. Em outros termos, um instrumento que se aproveita do acúmulo das produções humanas para existir e se perpetuar. O fato de tal poder estar sob propriedade e interesse de poucas mãos, se aproveitando do trabalho de tantas pessoas sem seu consentimento, é algo que desperta também energias, pensamentos e sentimentos coletivos , realimentando a egrégora dentro dessa dinâmica mágica.
Dessa maneira, adaptei os Arcanos Maiores para incluir temáticas que refletem os elementos do mundo que descrevi: “inovadores,” “venture capitalists,” “cientistas,” e “criação e obsolescência.” Figuras e eventos do cânone comum à cena tecnocientífica da qual faço parte agora são enquadrados sob a ótica mística para, paradoxalmente, serem uma representação menos caricata da realidade.
O jogo em si é bem simples: três cartas são escolhidas do deck. A primeira trará reflexões acerca do passado, a segunda sobre o presente, e a terceira indicará tendências para o futuro.. Essa forma de jogar foi escolhida tendo como objetivo produzir conselhos para perguntas que estejam relacionadas com problemas de / na pesquisa. Os textos que acompanham as cartas foram produzidos a partir de tensionar as descrições correntes dos Arcanos encontradas na internet com a crítica proposta. A interpretação fica a cargo da pessoa que realizar a consulta, mas nada impede que ele também utilize um LLM para interpretar os resultados.
Convido vocês a experimentarem de maneira explícita aquilo que, implicitamente, já estamos vivendo, trazer para a materialidade a metáfora dessa zona cinzenta entre mágica, fé, ciência e tecnologia e, na intimidade do seu aparelho celular ou computador, experimentar o que as cartas tem para te dizer sobre suas angústias tecnocientíficas. E para meus colegas que como eu trabalham em campos científicos onde a dureza impera, um aviso: fique tranquilo, ninguém ficará sabendo que você está envolvido com práticas tão subjetivas, e você ainda será respeitado entre seus pares sob a capa racional e pragmática que tanto se projeta. No entanto, já não posso garantir que você mesmo acreditará nela.
Agradecimentos
Gostaria de agradecer à Clarissa Reche e Guilherme Lino Fernandes pelo incentivo, apoio tecnológico e discussões que trouxeram esse projeto à tona. Agradeço também aos revisores por tornar esse texto amigável ao público.
Esta postagem foi curada pela Editora Colaboradora Clarissa Reche.