Há pelo menos quatro décadas, pesquisadoras feministas questionam a ciência, lançando as bases para uma crítica que se mostra cada vez mais fundamental e urgente. Em um cenário político e científico cada vez mais árido, tenso e hostil às lutas por transformação e justiça social, é com grande alegria e entusiasmo que apresentamos esta série de quatro posts, escritos por antropólogas feministas brasileiras e destinado a leitores acadêmicos especializados em STS, bem como a leitores de redes feministas mais amplas e comunidades ativistas de base.
A Rede Latino-Americana de Antropologia Feminista da Ciência e Tecnologia (RAFeCT) é um coletivo de pesquisadoras, ativistas e profissionais latino-americanas comprometidas com a disseminação de perspectivas feministas e interseccionais. Nossa rede é um espaço de acolhimento, troca de conhecimento e conexão entre academia, movimentos sociais e outras áreas do conhecimento. Desenvolvemos estudos de ciência e tecnologia a partir de uma perspectiva parcial, situada e interseccional. Uma perspectiva ética e responsável, com foco na promoção da justiça social, da equidade de gênero e no combate à opressão estrutural. Nos pautamos por princípios de criatividade, afetividade e cuidado, cultivando teorias e ações feministas críticas que sejam transinclusivas, antirracistas, decoloniais, anticapacitistas, anti-LGBTQIAPN+fobia e anticapitalistas.
A rede começou a ser gestada em 2023, durante o 14º Encontro de Antropologia do Mercosul (RAM, Brasil) e o 9º Encontro de Antropologia da Ciência e Tecnologia (ReACT, Brasil). O desejo de estabelecer a rede está enraizado no fato de que nosso campo de atuação na América Latina é altamente masculino e hostil, apesar do trabalho feminista e de mulheres ser fundamental para seus fundamentos. Entendemos que a academia como um todo continua prejudicial a alguns pesquisadores e a certos tópicos de pesquisa. Também reconhecemos que a heterocisnormatividade hegemônica da antropologia limita sua criatividade. Somos muitas, diversas e operamos de maneiras diferentes. O trabalho em rede é essencial para construir pontes entre a resistência feminista dentro e fora da academia, criando um espaço onde possamos denunciar e combater diversas formas de opressão, como sexismo, racismo, LGBTQIA+fobia e outras. Trabalhamos para garantir que as vozes, pesquisas e experiências de mulheres e pessoas dissidentes de gênero, especialmente aquelas em condições marginalizadas, possam ser evocadas, ouvidas e respeitadas. Nossas ações são um passo importante para transformar o campo acadêmico e científico, tornando-o mais inclusivo e comprometido com a equidade.
Atualmente somos mais de 28 grupos de estudo e laboratórios, além de 67 pesquisadoras, integrando disciplinas como antropologia, arqueologia, saúde pública, ciência da computação, artes, e com representantes de todas as regiões do Brasil, além de Argentina, Chile e Colômbia. A rede promove espaços de conversação e apoio, organizando eventos, grupos de discussão e seminários, além de fortalecer a produção e a circulação do conhecimento feminista. Esperamos continuar expandindo nossa rede, fortalecendo nossos laços com movimentos sociais feministas e outras áreas de atuação, e consolidando nossa presença em espaços estratégicos de tomada de decisão, tanto na academia quanto fora dela. Também pretendemos promover mais eventos, publicações, encontros e cursos em programas de graduação e pós-graduação sobre os temas discutidos e as teorias que fundamentam o STS feminista. Buscamos influenciar políticas públicas e transformar o campo da ciência e tecnologia em um ambiente mais acolhedor e inclusivo.
Acreditamos no florescimento da ciência feminista. Um dos nossos modestos, mas significativos passos em direção a esse sonho é a criação e manutenção do nosso blog, lançado em maio de 2025 e que conta com a colaboração de antropólogas da rede. Esta iniciativa foi inspirada pela experiência acumulada da Platypus em divulgação científica. O espaço agora hospeda esta série especialmente preparada para circulação entre nossos colegas do CASTAC. Eu, Clarissa Reche, fui curadora desta série. Sou editora colaboradora da Platypus e membra da RAFeCT. Como cientista social especializada em STS feminista, atualmente estou recebendo uma bolsa de um programa do governo brasileiro que promove e capacita jornalistas científicos. Esta bolsa me permite trabalhar com a rede na criação e manutenção de infraestrutura digital, incluindo a edição do blog da RAFeCT.
Nesta série de quatro posts, apresentamos uma pequena amostra do trabalho de antropólogas feministas brasileiras que atuam na área da antropologia da ciência e da tecnologia. Nossa intenção é abrir caminhos de diálogo e troca com outras colegas que lutam e pesquisam ao redor do mundo, sonhando, como nós, com uma ciência diferente. Sabemos das dificuldades de circulação do nosso trabalho, que enfrenta barreiras nacionais e regionais, mas estas são incomparáveis ao enorme desafio de circular internacionalmente nossa produção científica e intelectual no centro do mundo. Por isso, é com grande alegria que compartilhamos nosso trabalho — do qual muito nos orgulhamos por sua qualidade e relevância — nesta janela para o mundo que é a Platypus.
Abrimos a série com um texto de Ana Manoela Primo dos Santos Soares, pesquisadora indígena do povo Karipuna e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará (UFPA, Brasil). O texto narra sua trajetória desde a infância como única aluna indígena em uma escola particular de Belém (Pará, Brasil) até sua formação acadêmica e política, influenciada pela mãe e pela avó, que preservaram a língua, a história e a luta coletiva de seu povo. Ana Manoela desafia a noção ocidental de “feminismo indígena” e afirma a existência de um “mutirão de mulheres”. Essa prática coletiva também guia sua antropologia.
Nosso segundo post é de Juliana Vieira, doutoranda em Saúde Pública pelo Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Brasil). Juliana analisa um caso de transplante de útero de 2016 no Brasil, um uso pioneiro de um órgão de doadora falecida com uma gestação bem-sucedida. Apesar do potencial para ampliar as opções reprodutivas, o procedimento é caro, não vital, envolve riscos e imunossupressão, e sua promoção pode criar novas demandas sociais alinhadas à valorização exclusiva da maternidade biológica. Assim, o debate vai além dos avanços técnicos, exigindo reflexão sobre os significados culturais e de gênero da reprodução e sobre como a ciência, longe de ser neutra, é moldada por valores e perspectivas que precisam ser questionados.
Fruto de uma experiência de pesquisa, leitura e escrita com adolescentes, nosso terceiro post é escrito por Irene do Planalto Chemin, Geovana Luna dos Santos, Kauan Alves da Silveira Aristides, Raylane Souza de Moura, Samara Lopes de Oliveira e Verônica Martins da Silva. Irene, membra da RAFeCT, é mestranda em Comunicação Científica e Cultural (Labjor/IEL, Unicamp, Brasil) e, durante sua pesquisa, trabalhou ao lado das demais autoras — adolescentes pesquisadoras que integraram um programa de iniciação científica para estudantes do Ensino Médio. O texto apresenta a experiência de leitura do Manifesto Ciborgue, de Donna Haraway, no contexto da produção de um podcast sobre educação digital, no qual a figura ciborgue serve como metáfora para refletir sobre a relação entre tecnologia e juventude. A obra clássica de Haraway é entendida pelos adolescentes como um gênero político e crítico que questiona verdades absolutas e propõe a mistura de elementos, influenciando a maneira como o grupo constrói sua “escrita ciborgue” no podcast — um espaço de colagem, som e narrativa que articula ciência, ficção e experiências cotidianas.
Concluindo a série, nosso quarto post é escrito por Daniela Tonelli Manica, antropóloga e pesquisadora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor, Universidade Estadual de Campinas, Brasil), e Fabiene Gama, professora do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil). Neste texto, as autoras revisitam o conhecido caso do sociólogo português Boaventura de Souza Santos, acompanhando sua revelação a partir das acusações que vieram à tona após a publicação do livro “Sexual Misconduct in Academia”, em 2023. Elas resumem os principais acontecimentos desde então, organizando didaticamente a forma lamentável como o intelectual respondeu às acusações e retaliou, sistematicamente, as vítimas. Concluímos nossa série com este contramanual que toca antropologicamente nos principais problemas estruturais da ciência: a misoginia e o racismo, que a teoria STS feminista há muito denuncia.
Você poderá acompanhar esta série a partir do próximo mês, setembro, com uma publicação por mês. As publicações foram selecionadas especialmente para a Platypus e seu público, publicadas em inglês, espanhol e português neste blog, e replicadas em português no blog da RAFeCT. Esperamos que esta série sirva de semente, germine e dê frutos junto com nossos colegas da CASTAC. Aqui na RAFeCT, somos gratas por nossa parceria e acolhemos solidariedade e colaboração com o trabalho de STS feminista em suas próprias regiões.