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Transplante de Útero: Avanço Científico ou Reflexo de Estereótipos de Gênero?

O transplante de útero tem sido apontado como uma das tecnologias reprodutivas mais inovadoras dos últimos anos (Brännström 2018). O procedimento permite que mulheres sem útero possam engravidar e dar à luz a partir de um órgão doado, cuja retirada acontece após o nascimento do bebê em grande parte dos casos (Brännström 2024). Mas, por trás desse avanço, existe também uma discussão sobre os valores e crenças que impulsionam o desenvolvimento dessa tecnologia. Afinal, até que ponto tecnologias médicas consideradas altamente inovadoras, como o transplante de útero, deixam de expressar uma visão progressista de futuro para, em vez disso, reforçar valores moralmente conservadores relacionados à maternidade, ao gênero e à gestação? Será que esta é realmente uma solução para um problema médico ou uma resposta a uma construção social que prioriza a maternidade biológica em detrimento de outras formas de parentalidade? (Luna 2004; Luna 2007).

O Caso Brasileiro: Pioneirismo e Impacto

Em 2016, o Brasil foi palco de um transplante de útero inédito: pela primeira vez, uma paciente recebeu o órgão de uma doadora falecida e teve uma gravidez bem-sucedida. O caso ganhou notoriedade internacional e foi amplamente citado na comunidade científica (Ejzenberg et al., 2018). A equipe envolvida com o caso de sucesso aponta que esse procedimento pode expandir as possibilidades de maternidade para mulheres que nasceram sem útero ou que tiveram o órgão removido (Soares et al., 2016). Porém, algumas críticas surgem em relação à forma como esse tema é tratado. O discurso científico em torno do transplante uterino enfatiza a experiência da gestação no próprio corpo como algo essencial para a “maternidade ideal”, desconsiderando outras formas de parentalidade, como a adoção ou a gestação por substituição (Silva e Carvalho 2016).

The image shows an artistic and scientific project, with an object in the center in the shape of a uterus surrounded by parts of blue resin.

“Organ of Radical Care”, por Charlotte Jarvis. Veja mais: https://cjarvis.com/organ-of-radical-care-una-matriz-colaborativa/

A Maternidade Biológica é o Único Caminho?

O transplante de útero é muitas vezes apresentado como um “sonho” ou “esperança” para mulheres com infertilidade uterina. Contudo, esse tipo de abordagem reforça um essencialismo biológico, ou seja, a ideia de que a maternidade plena precisa, obrigatoriamente, envolver a gestação no próprio corpo (Silva e Carvalho, 2016). Esse conceito ignora outras possibilidades, como a adoção, que é frequentemente desqualificada nos discursos científicos analisados ​​(Ejzenberg et al., 2018).

Os médicos envolvidos no procedimento destacam que a falta de um útero pode ter impactos psicológicos significativos e que as alternativas existentes (adoção ou barriga de aluguel) são difíceis de serem aceitas jurídica ou socialmente (Ejzenberg, Soares Júnior e Baracat 2016). No entanto, esse argumento desconsidera que a adoção, por exemplo, é a gestão de uma experiência materna válida e enriquecedora, que não depende dação para ser significativa.
Riscos e custos, o lado oculto do procedimento: diferentemente de outros transplantes, o transplante de útero não é vital, ou seja, ele não salva vidas (Silva e Carvalho 2016). Apesar de buscar proporcionar a experiência da gravidez para uma mulher que até então não teria essa possibilidade, o procedimento é complexo, envolve terapia de imunossupressão e pode acarretar complicações graves para a saúde da paciente (Castellón et al. 2017). Além disso, a cirurgia e o tratamento são caros, o que levanta questionamentos sobre sua viabilidade como um procedimento acessível para todas as mulheres que o desejarem.

O papel da tecnologia na construção dos desejos: As novas tecnologias reprodutivas têm o poder de modificar não apenas as possibilidades biológicas, mas também os desejos e expectativas das pessoas (Luna 2004; Marini 2018). Antes do transplante uterino, mulheres sem útero não viam a gravidez no próprio corpo como uma opção. Agora, a ciência apresenta uma nova possibilidade e, com isso, cria-se uma nova demanda social.

Transplante de Útero: Inovação ou Tradição?

O transplante de útero representa, sem dúvida, um avanço médico-científico impressionante. Contudo, é fundamental refletir sobre os valores que impulsionam essa tecnologia e os discursos que a cercam (Nucci 2010; Rohden 2001). Ao enfatizar a gestação como o caminho “ideal” para a maternidade, o discurso médico pode reforçar estereótipos de gênero e minimizar outras formas de vivenciar a parentalidade (Scavone 2001a).

O debate sobre o transplante de útero não deve ser apenas sobre avanços técnicos, mas também sobre os significados sociais e culturais da reprodução, da maternidade e, principalmente, de como a ciência tradicional lida com as questões de gênero (Schiebinger 2001; Scavone 2001b). Afinal, a ciência não é neutra: ela é moldada por valores, interesses e perspectivas que precisam ser constantemente questionados (Vieira, Azize e Nucci, 2025).


Esta postagem foi curado pela editora colaboradora Clarissa Reche.
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Referências

Brännström, M. 2018. “Current Status and Future Direction of Uterus Transplantation.” Current Opinion in Organ Transplantation 23, n. 5: 592–97.

———. 2024. Webinar Uterus Transplantation: A Global Presence Celebrating 10 Years [online]. International Society of Uterus Transplantation.

Castellón, L., M. Amador, R. González, M. Eduardo, C. Díaz-García, N. Kvarnström, e M. Brännström. 2017. “The History behind Successful Uterine Transplantation in Humans.” JBRA Assisted Reproduction 21, n. 2: 126–34.

Ejzenberg, D., W. Andraus, L. Baratelli Carelli Mendes, L. Ducatti, A. Song, R. Tanigawa, V. Rocha-Santos, R. Macedo Arantes, J. Soares, P. Serafini, L. Bertocco de Paiva Haddad, R. Pulcinelli Francisco, L. Carneiro D’Albuquerque, e E. Chada Baracat. 2018. “Livebirth after Uterus Transplantation from a Deceased Donor in a Recipient with Uterine Infertility.” Lancet 392, n. 10165: 2697–704.

Ejzenberg, D., J. Soares Júnior, e E. Baracat. 2016. “Uterus Transplant: Are We Close to This Reality?” Revista da Associação Médica Brasileira 62, n. 4: 295–96.

Luna, N. 2004. “Novas Tecnologias Reprodutivas: Natureza e Cultura em Redefinição.” Campos – Revista de Antropologia [s.l.]: 127–56.

———. 2007. Provetas e Clones: Uma Antropologia das Novas Tecnologias Reprodutivas. Rio de Janeiro: Fiocruz.

Marini, M. 2018. Corpos Biônicos e Órgãos Intercambiáveis: A Produção de Saberes e Práticas sobre Corações Não-humanos. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

Nucci, M. 2010. “‘O Sexo do Cérebro’: Uma Análise sobre Gênero e Ciência.” In 6° Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero – Redações, Artigos Científicos e Projetos Pedagógicos Vencedores – 2010, 147–62. Brasília: Presidência da República, Secretaria de Políticas para as Mulheres.

Rohden, F. 2001. Uma Ciência da Diferença: Sexo e Gênero na Medicina da Mulher. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

Scavone, L. 2001a. “Maternidade: Transformações na Família e nas Relações de Gênero.” Interface 5, n. 8: 47–59.

———. 2001b. “A Maternidade e o Feminismo: Diálogo com as Ciências Sociais.” Cadernos Pagu, n. 16: 137–50.

Schiebinger, L. 2001. O Feminismo Mudou a Ciência? Bauru: Edusc.

Silva, A., e L. Carvalho. 2016. “A Meta-analysis on Uterine Transplantation: Redefining the Limits of Reproductive Surgery.” Revista da Associação Médica Brasileira 62, n. 5: 474–77.

Soares, J., D. Ejzenberg, W. Andraus, L. D’Albuquerque, e E. Baracat. 2016. “First Latin Uterine Transplantation: We Can Do It!” Clinics 71, n. 11: 627–28.

Vieira, Juliana Rodrigues, Rogerio Lopes Azize, e Marina Fisher Nucci. 2025. “Um transplante efêmero: análise de publicações científicas sobre o caso brasileiro de transplante uterino.” Physis: Revista de Saúde Coletiva 35 (3): e350314.

 

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