Desde o início dos anos 2000, o Brasil vem experienciando uma mudança significativa no que tange à garantia de direitos das pessoas com deficiência no país. Uma trajetória que contou com a luta de movimentos sociais de pessoas com deficiência e culminou na promulgação da Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (2006) com equivalência à emenda constitucional em 2009, e na publicação da Lei Brasileira de Inclusão, também conhecida como o Estatuto das Pessoas com Deficiência, em 2015. Legislações estas que possuem em seu cerne a promoção da autonomia de pessoas com deficiência e sua participação social e comunitária. Apesar destas medidas nem sempre virem acompanhadas de políticas que de fato garantam sua implementação elas ao mesmo tempo refletem e fomentam os discursos que as embasam e, portanto, impactam a vida de pessoas com deficiência e suas famílias.
A centralidade que as noções de autonomia e independência ganharam na legislação atual são fruto também de um contexto mais amplo embasado na concepção de um indivíduo moderno, para quem as capacidades de se autogovernar, fazer as próprias escolhas, ser autossuficiente e ter domínio de si são tidas como valores absolutos e constituidores da pessoa. Não por acaso, a associação entre autonomia e independência e condição de pessoa (personhood) foi responsável pela segregação e violência contra humanos específicos fazendo com que estes valores apareçam tão fortemente nas lutas de movimentos sociais e grupos historicamente excluídos. A importância dessas concepções, no entanto, não pode fazer com que as pensemos enquanto categorias auto evidentes. Para alguns segmentos do Movimento Social das Pessoas com Deficiência no Brasil independência seria a possibilidade de tomar as próprias decisões e gerir sua vida, enquanto autonomia seria o controle sobre o próprio corpo em determinados ambientes (Fietz and Mello 2018; Mello 2010). Já no movimento dos Estados Unidos a ideia de autonomia está mais ligada à autogovernança e a de independência à autossuficiência (Winter 2003).
Em minha pesquisa junto a mães de adultos com deficiência intelectual no sul do Brasil os termos aparecem como sinônimos, sendo utilizados principalmente por profissionais dos campos da educação e biomédicos e quase como uma palavra composta (“independência e autonomia”). Neste texto, eu apresento como a experiência destas mães complicam as concepções e realidades vividas de “autonomia e independência,” particularmente em como estas circunscrevem ideias e práticas de cuidado (materno).
A figura materna e a produção de indivíduos autônomos
Minhas interlocutoras são responsáveis pelos cuidados de seus filhos com quase nenhum suporte estatal para tanto e até recentemente pouco ouviam sobre esta questão. Aquilo considerado como “bom cuidado” passava muito mais por garantir que o filho tivesse acesso a atividades terapêuticas e de ensino e sobrevivesse em um mundo hostil às especificidades da deficiência. As novas concepções acerca da deficiência, no entanto, fazem com que estas mulheres sejam hoje interpeladas a agir enquanto facilitadoras da promoção desta autonomia. Estas mães são muitas vezes acusadas de ora estarem superprotegendo seus filhos e ora os negligenciando. Isso mostra um paradoxo que torna necessário que pensemos criticamente sobre as noções de autonomia e cuidado, algo que argumento ser possível a partir da proposição de teóricas feministas dos estudos da ciência e tecnologia para que “pensemos com (o) cuidado” (Puig de la Bellacasa 2017; Mol, Moser, and Pols 2010).
Ao longo dos seis anos em que realizo pesquisa etnográfica com estas mulheres, participei de inúmeras palestras promovidas pela organização não-governamental que seus filhos participavam. Educadores, psicólogos, e assistentes sociais eram convidados a falar com as famílias sobre a importância da promoção da “independência e autonomia.” Nestes momentos, os profissionais destacavam os riscos que o excesso de cuidado poderia causar, levando a formação de dependências desnecessárias. Para tanto davam exemplos de como as mães devem ajudar seus filhos a serem o mais “independentes e autônomos possível”. Eles destacavam a importância destas mães ensinarem seus filhos a se vestirem e tomarem banho sozinhos. Do mesmo modo, salientavam necessidade de que incentivassem sua participação no maior número de atividades se esses assim desejarem, para que com isso tivessem uma vida social para além da familiar. Além disso, é dito as mães que permitam que os filhos tomem suas próprias decisões e que os ensinem a tomar decisões que não coloquem em risco o seu bem-estar. Tal concepção sobre “autonomia e independência” se assemelha àquela apresentada por Pols, Althoff, e Bransen (2017) que em seu trabalho junto a cuidadores formais na Holanda, perceberam que os cuidadores a compreendem enquanto uma competência. Segundo as autoras, ensinar aqueles de quem cuidavam a serem pessoas mais autônomas era parte central de seu trabalho.
Em meu campo de pesquisa, ficou evidente que os profissionais entendiam que caberia a eles ensinar às mães a como garantir que seus filhos aprendam a serem independentes e autônomos. Mas a relação de maternidade se distingue daquela dos cuidadores formais não apenas por estarmos falando de uma relação de longo-prazo e que se dá em diferentes fases da vida, mas principalmente porque estas mães cuidadoras são constantemente interpeladas a demonstrarem sua capacidade enquanto mães e sua habilidade em cumprir de modo satisfatório o papel que lhes é designado. Se enquanto os filhos cresciam elas foram responsáveis por garantir o desenvolvimento de suas competências, por encontrar os serviços adequados, e lutar para que os filhos tivessem acesso ao que lhes é garantido por lei, hoje são interpeladas pelos recentes discursos que as impelem a serem sujeitos ativos na promoção da autonomia e independência de seus filhos. Ao mesmo tempo, de forma análoga ao que ocorre com as pessoas com deficiência, as mães são também representadas ora enquanto coitadas, dignas de pena e compaixão, mulheres a quem foi dado um fardo a ser carregado e que têm suas vidas marcadas por algo compreendido como uma tragédia pessoal; ora como “super mulheres,” guerreiras que “superam a deficiência dos filhos.” Estas concepções são alimentadas pela lógica capacitista e pela presunção igualmente capacitista de que ninguém gostaria de ter um filho com deficiência (Kafer 2013).
Autonomia em um contexto mais amplo de infraestruturas e relações de cuidado
A centralidade da figura materna na promoção de autonomia neste contexto torna necessário que se vá além da pretensa dicotomia entre “excesso de cuidado” e “promoção de autonomia” que é muitas vezes apresentada. É isso que um olhar a partir das abordagens feministas dos estudos sobre ciência e tecnologia permite. Em primeiro lugar, ela faz com que observemos as tantas associações comumente inviabilizadas (Puig de la Bellacasa 2017), como a falta de infraestrutura do cuidado em um contexto em que a violência urbana, a falta de qualidade no transporte público e a quase total falta de acessibilidade contribuem para que estas mulheres tenham receio de deixar que os filhos andem desacompanhados. Estas faltas fazem com que caiba às mães a tarefa de levar os filhos em suas atividades de lazer, terapêuticas e até mesmo laborais muitas vezes em detrimento de outros afazeres que deveriam realizar. Segundo, esta abordagem pede que nos atentemos para as práticas, para os múltiplos modos que o cuidado é performado no cotidiano, que levemos em conta seu caráter contingencial e situacional, que consideremos o que está em jogo para os atores envolvidos (Mol 2008; Mol, Moser, and Pols 2010) e ainda que se analise “os bens que cuidadores e pacientes [e aqui incluo todos aqueles que recebem os cuidados] buscam, os valores e normas que eles conformam ex- e implicitamente, os maus que eles querem evitar” com determinada prática (Pols 2014, 83).
Ser a principal responsável pelo cuidado dos filhos faz com que as mães com quem realizei minha pesquisa sejam a todo momento interpeladas a tomar decisões sobre o bem-estar destes. Estas decisões são algumas vezes feitas em conjunto e outras não, ora prevalecendo a vontade de um ou de outro. Para tanto, as mães precisam considerar os possíveis efeitos que cada decisão terá sobre a vida de ambos, no que tange, inclusive, ao acréscimo de cuidados futuramente necessários. Tudo isto se dá de modo especulativo e tendo como base suas experiências anteriores e aquilo que ouvem de parentes, amigos, profissionais, e na mídia em geral. A todo momento estas mulheres estão trabalhando na “recriação de relações de ‘tão bom quanto possível’ e que, deste modo, requerem uma abertura especulativa sobre o que este ‘tão bom quanto possível’ envolve” (Puig de la Bellacasa 2017, 6). Por tudo isso, ao falarmos de relações de cuidado é importante discuti-las “em termos de relações e não de autonomia individual” (Pols, Althoff, and Bransen 2017, 775).
Se tanto o cuidado quanto a deficiência se constroem em relações que envolvem uma gama de posições, desejos e vontades que estão sempre sendo negociadas o mesmo se dá com a autonomia uma vez que “estar em uma relação significa respeitar a autonomia de não apenas uma das partes” (Pols, Althoff, and Bransen 2017, 779). Estamos falando da constante administração de diferentes autonomias e valores que estão em jogo nas práticas de cuidado. Construir a relação com aquele de quem se cuida é fundamental para que o trabalho do cuidado se dê, e traz consigo diferentes moralidades no que tange ao que significa ser uma “boa cuidadora.” No caso das mães, isso é acrescido da constante avaliação sobre ser uma “boa mãe.” Como nas relações de cuidado em que os valores a serem buscados ou protegidos não são dados de antemão, nos arranjos de autonomia a autonomia em si nem sempre é o valor a ser buscado.
Pensar as relações que permitem que os arranjos de autonomia se constituam em cada situação é fundamental para que esta não seja compreendida enquanto um valor absoluto uma vez que estes diferentes arranjos podem estar em conflito um com o outro. Como a busca destes arranjos informa as práticas de cuidado, é necessário um olhar atento para essas a fim de compreender o que está em jogo em cada momento para os diferentes atores envolvidos, quais são as condições de possibilidade, e os resultados buscados em cada situação (Mol 2008; Mol, Pols, and Moser 2010; Pols 2014). Podemos pensar aqui no caso de Neiva, que é a principal cuidadora de Brian, seu filho de 25 anos. Ela entende que é importante que Brian tenha uma vida social para além da familiar, que ele participe de atividades que goste e que desenvolva novas habilidades. Mas o fato dele ser bastante falante, mudar de humor rapidamente e uma estética periférica faz com que Neiva tema que, caso não o acompanhe às atividades, pessoas possam pensar que ele está sob o efeito de drogas. O que poderia fazer com que ele fosse preso pela polícia ou agredido. Logo, eu argumento que no caso das mães brasileiras que são as cuidadoras primarias de seus filhos adultos, é importante que prestemos atenção em como as infraestruturas de cuidado e os diferentes discursos sobre a deficiência conformam as relações mãe/filho(a). Pensar criticamente sobre autonomia e cuidado a partir das propostas de teóricas feministas dos estudos da ciência e tecnologia permite que questionemos o modo como a noção de autonomia trazida pela legislação vigente é mobilizada no cotidiano de meus interlocutores e ir além do paradoxo aqui apresentado.
Referências
Fietz, Helena and Anahí Guedes de Mello. 2018. “A Multiplicidade do Cuidado na Experiência da Deficiência.” Revista Anthropológicas 29(2): 114-141.
Mello, Anahí Guedes de. 2016. “Deficiência, Incapacidade e Vulnerabilidade: Do Capacitismo ou a Preeminência Capacitista e Biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC.” Ciênc. Saúde Coletiva [online] 21(10): 3265-3276.
Pols, Jeannette. 2014. “Towards an Empirical Ethics in Care: Relations with Technologies in Health Care.” Medicine, Health Care and Philosophy 18(1): 81-88. https://doi.org/10.1007/s11019-014-9582-9
Pols, Jeannette, Brigitte Althoff, and Els Bransen. 2017. “The Limits of Autonomy: Ideals in Care for People with Learning Disabilities.” Medical Anthropology 36(8): 772-785.
Puig de la Bellacasa, Maria. 2017. Matters of Care: Speculative Ethics in More than Human Worlds. Minneapolis: University of Minnesota Press.
Mol, Annemarie. 2008. The Logic of Care: Health and the Problem of Patient Choice. New York: Routledge.
Mol, Annemarie, Ingunn Moser, and Jeannette Pols. 2010. “Care: Putting Practice into Theory.” In Care in Practice: On Tinkering in Clinics, Homes, and Farms, eds. Mol, A., I. Moser & J. Pols, pp. 7-25. Verlag Transcript.
Kafer, Alison. 2013. Feminist, Queer, Crip. Indianapolis: Indiana University Press.
Winter, Jerry Alan. 2003. “The Development of the Disability Rights Movement as a Social Problem Solver.” Disability Studies Quarterly 23(1): 33-62.