Distraction Free Reading

Foucault, Dialética e Estudos Clínicos Randomizados: Pontes entre Medicina e Antropologia

Grafite na fachada do prédio onde uma das entrevistas foi realizada. Contém a ilustração de um profissional de saúde usando máscara e touca, segurando uma rosa. Foto da autora.

É, na verdade, eu acho que eu queria muito conhecer como vocês fazem pesquisa, então eu já li alguns artigos da área de antropologia e sociologia na época da minha formação e eu lembro 2 coisas na minha cabeça: O primeiro é que sempre aparecia dialética. Essa palavra sempre estava lá…três coisas: a outra sempre citava Foucault. E, a terceira. É que eu não conseguia entender o que estava escrito. Eram as 3 coisas que eu lembro, Foucault, dialética e que eu não conseguia entender aquilo, mas eu sei que é importante e eu queria aprender. Então, na verdade, acho que respondendo a sua pergunta, eu gostaria muito de ver qual é o tipo de produto que vocês geram…para entender como vocês fazem de uma forma assim mais ampla. Já saindo um pouco dessa pesquisa em si é que a hora que eu vi (a sua mensagem), estava agora de manhã, que eu te falei que estava vendo o seu lattes,  mandei mensagem para Soraya (grifos próprios). (Trecho retirado de entrevista presencial com Afonso realizada em uma universidade pública, no dia 3 de outubro de 2022.)

Entrelaçamentos, diálogos possíveis e traduções. Esses são os três pontos destacados na fala de Afonso, enquanto fazia uma entrevista que contribuiu para a minha tese, defendida em junho de 2024 em um programa de pós-graduação em Antropologia na Universidade de Brasília, no Brasil. E esses pontos também são essenciais para o post de hoje, onde irei refletir sobre como nós, antropólogas e antropólogos, podemos construir pontes com outras áreas científicas. No entanto, antes de correlacionar os pontos destacados, apresentarei o contexto da entrevista, o trabalho que gerou a tese, e a reflexão adjacente que gerou esse manuscrito.

Afonso é um homem branco, professor universitário, formado em medicina, tem em torno de 40 e poucos anos. Esse nome é fictício, para preservar a sua identidade e retirei o trecho das quase 2 horas de entrevista que ele me concedeu. Nos encontramos na Universidade de Brasília, lugar familiar a mim e à Afonso, que me recebeu no seu espaço de trabalho. Eu não conhecia o pesquisador anteriormente e a fala apareceu após ter perguntado como ele gostaria de ter a devolutiva do meu trabalho. O “Lattes” que ele menciona é o registro mais utilizado de currículos entre os cientistas brasileiros, numa plataforma vinculada ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Soraya foi minha orientadora de doutorado e descobrimos outras coisas em comum que faziam parte das conexões entre cientistas que habitam a mesma cidade, ainda que realizem pesquisas em áreas distintas. 

Na minha tese, apresento reflexões sobre pesquisas e a perspectiva de cientistas que investigaram os tratamentos medicamentosos dentro do kit-covid. Realizei o estudo a partir de notícias de jornais e entre setembro de 2022 e fevereiro de 2023, entrevistei 26 cientistas diferentes. O kit-covid se trata de uma série de medicamentos propagandeados publicamente e chancelados por órgãos reguladores para o uso durante a pandemia para os tratamentos ainda em fase de testagem para covid. 

Foi assim que cheguei até Afonso. Ele estudou o plasma de convalescente. Ele criticava o kit-covid, na época também nomeado de tratamento precoce. Talvez por ser professor universitário, tinha uma didática para me explicar sobre as confusões e embaraços que se deram durante o período pandêmico no Brasil. Segundo ele tratamento precoce, forma pela qual muitos políticos se dirigiam aos medicamentos como a Hidroxicloroquina para o tratamento da covid, era mais uma forma de intervenção e não a própria intervenção em si. O termo é utilizado em cenário de crise sanitária global de forma confusa e dentro das ciências biomédicas se refere ao momento em que uma intervenção é proposta. No entanto, para as figuras públicas o tratamento precoce era sinônimo de caixas de remédios que deveriam ser tomadas profilaticamente ainda que sem comprovação científica (Castro, 2021). 

Afonso me explica que o tratamento precoce é muitas vezes utilizado para adoecimentos como o câncer. Em que a ideia não é tratar um adoecimento antes que ele ocorra, mas sim investir em um diagnóstico no início do curso de uma doença, para assim propor um tratamento com tempo hábil de: se observar e acompanhar a resposta do organismo adoecido àquela situação, a partir de uma intervenção. Afonso fazia a todo momento da entrevista um exercício empático de tradução da linguagem biomédica e a antropológica, esta última, a que me era mais familiar.

Sendo assim, neste manuscrito quero mostrar a partir do trecho da entrevista algumas ideias, perguntas e reflexões sobre formas distintas dos fazeres científicos e o diálogo entre eles. Essa interface é especialmente interessante, porque podemos observar uma série de trabalhos que se propõem investigar outras áreas do saber e problematizam alguns desafios para investigações em conjunto. Ainda, tenho uma formação interdisciplinar, sou psicóloga de formação, trabalho como professora substituta em um departamento também interdisciplinar, em Saúde Coletiva no norte do país, e tenho convivido no último ano em particular com farmacêuticos, psicólogos, biólogos, sociólogos, antropólogos e enfermeiros. É inevitável refletir sobre as frequentes traduções, dialéticas às vezes bem-sucedidas, às vezes malsucedidas que entram em cena na construção de um fazer científico.

Entrelaçamentos entre diferentes campos do saber e o fazer científico no “quintal de casa”

Diálogos entre diferentes conhecimentos não é precisamente uma novidade para os Science and Technology Studies (STS), há trabalhos como Latour e Woolgar (1997 [1988]), Traweek (1993), Martin (1998), Fleischer (2023), Castro (2020), Petryna (2009) dentre outros autores que investigam outras áreas, biológicas, física, médicos, indústria farmacêutica a partir de uma perspectiva antropológica. No entanto, vejo tais aproximações como um potencial de contraposição à ideia de uma única ciência hegemônica, que seria unicamente capaz de explorar uma área do conhecimento, ideia mais comum nas ciências da saúde, por exemplo. Onde “ser da saúde” e falar da saúde se torna um pré-requisito pouco questionado.

Historicamente no Brasil esse imbróglio tem uma série de repercussões em trabalhos de cientistas das áreas humanas e sociais que buscam trazer uma outra perspectiva sobre a saúde. E encontram dificuldade em ter seus projetos de pesquisa aprovados por comitês de ética em pesquisa que eram compostos por pessoas formadas na área da saúde. Há uma coletânea de trabalhos com diversos relatos de pesquisadores que foram questionados sobre a forma em que o seu fazer científico era estruturado e não necessariamente envolvendo uma avaliação ética sobre as suas pesquisas (Fleischer e Schuch, 2010).  

Enquanto escrevia a tese notei mais ainda o potencial plural das ciências, bem como Sarmento, Santos e Abib (2023) e Traweek (1988) já escreveram. O primeiro destaca o caráter não consensual do fazer científico e a segunda ilustra as “camas de gato”, os entrelaçamentos de diferentes saberes e disciplinas que vão construindo uma outra perspectiva, por sua vez contra hegemônica. Afonso explora esse aspecto, principalmente quando deixa claro a sua curiosidade com a forma de pesquisar das ciências sociais. Ele afirma “eu gostaria muito de ver qual é o tipo de produto que vocês geram…para entender como vocês fazem de uma forma assim mais ampla”. E essa curiosidade é demonstrada em ações quando ele, enquanto pesquisador, também realiza o seu trabalho investigativo, busca o meu currículo lattes e faz a conexão com a minha orientadora, Soraya. 

Desse modo, para aprofundar nessa questão, quero voltar a um momento inicial, um pouco antes de começarmos a entrevista. 

Chego no estacionamento de frente ao prédio da universidade (..) Ele desligou o telefone e disse que havia visto meu currículo lattes. Notou que o nome de minha orientadora lhe era familiar. Comentou que a conhecia, porque seu filho estuda na mesma escola da filha de Soraya. Disse inclusive que enviou uma mensagem a ela um pouco antes falando que estava a caminho para entrevistá-lo. 

Afonso logo me disse que tinha muito interesse em descobrir novas áreas fora da sua zona de conforto, como as ciências humanas, porque percebe que trabalha de modo diferente e que a sua esposa que também é pesquisadora, mas na área de biologia, tem muito mais diálogo com as pesquisas que ele desenvolve.  (Trecho retirado do diário de campo 3 de outubro de 2022).

Os efeitos de se fazer pesquisa no “quintal de casa” (como Soraya, minha orientadora nomeou) poderiam ser diversos. Não era a primeira vez que algum cientista que fiz entrevista havia procurado o meu currículo antes de me conhecer pessoalmente, que estava interessado em saber quem eu era, afinal, era uma completa estranha, às vezes indicada por seus colegas, às vezes não e que chegou em seus nomes por sua produção científica. No entanto, a situação acima me despertou para perceber que o entrelaçamento com a cidade, a universidade e os trânsitos nesse espaço proporcionariam outros atravessamentos que eu não esperava. Talvez por pertencermos a áreas distintas e compreender que as cidadelas (Martin, 1998) entre cientistas os fazem sentir como se houvesse de fato muros que separam grupos de pesquisadores diferentes. As cidadelas (Martin, 1998) são locais, meios em que os pesquisadores realizam seus estudos e trocam entre seus pares, mas dificilmente saem desse território ou convocam outros pesquisadores de outras cidadelas a entrar em seus espaços.

Mesmo sabendo que a universidade compreende milhares de servidores, pesquisadores, professores e alunos, aquela circunstância foi diferente. No entanto, essa experiência me lembrou sobre a notoriedade, de que a minha pesquisa poderia ser comentada entre cientistas. Isso se concretizou com o tempo e que as pontes entre as cidadelas apareceram e eu entrevistei, sem saber com antecedência, um casal de cientistas, através de convites separados e individuais que fiz a cada um. Eles comentaram entre si antes de nos encontrarmos e no dia que nos conhecemos, a cientista falou que eu tinha entrado em contato com seu marido também e que ele tinha achado a minha pesquisa interessante. 

Além disso, refleti sobre o papel do currículo lattes nas redes entre cientistas. Ele evidencia vínculos, associações. Antes de entrevistar o casal de pesquisadores, eu sabia que eles tinham publicado trabalhos juntos, mas isso era tudo que um documento como esse poderia evidenciar. O meu currículo deixava claro a minha filiação acadêmica, a relação de destaque que é dada a minha orientadora, que tem papel essencial na minha formação. 

Nos currículos de cientistas há nomes, trajetórias, lugares que evidenciam marcos temporais nas suas histórias, mas também deixam lacunas e outras associações sem maiores detalhes. Essa não foi a primeira vez que eu esbarrei com médicos que leram antropólogas/os, talvez essa ponte esteja mais disponível do que nós antropólogas imaginamos e não sei exatamente se fomos treinados a fazer o esforço teórico-metodológico que Afonso fez. Na próxima e última seção deste manuscrito apresento uma situação que ajudará a compreender o interesse que Afonso deixou claro no final da entrevista e mostro as reflexões que ela me provocou, inclusive enquanto uma acadêmica com formação interdisciplinar.

Recrutando o pesquisador, entre os rastros dos currículos e as conexões entre cientistas

Afonso me entrevistou, gentilmente esperou terminar a minha entrevista, mas quando acabamos ele me falou de um projeto de pesquisa. Ele tinha submetido este trabalho para um edital com financiamento dos Estados Unidos e o estudo duraria 5 anos. Naquele momento, ele estava na fase de montar uma equipe. No projeto havia a previsão de montar estações de trabalho nas regiões com uma diversidade biológica, abarcando diferentes vegetações: cerrado, mata atlântica, amazonia e caatinga. Ele disse:

Mas uma parte muito importante dessa pesquisa é o efeito que as doenças têm na população. A doença causa pobreza, a doença, causa, ….a mesma coisa a questões de antropológicas e sociológicas também acabam impactando nas doenças nas migrações das pessoas, a baixa renda que faz com que a pessoa emigre e a falta de uma educação formal adequada que permita a pessoa entender que queimada não é a melhor solução. Então tem toda essa parte de humanas, de antropologia, sociologia, que acho que ia ser super importante nesse projeto. (..) Uma coisa que eu sempre senti falta nessa equipe era o pessoal para trabalhar nessa parte humana da história para a gente trabalhar em conjunto, né? (Trecho retirado de entrevista presencial realizada na Universidade de Brasília, no dia 3 de outubro de 2022)

Instigante como Afonso coloca a antropologia como a “parte humana” neste projeto. O que mais uma vez se contrapõe a ideia de as ciências da saúde como saber hegemônico. Na época, Afonso me perguntou se eu sabia de alguém que se interessaria no projeto, mas de imediato não me veio nenhum nome. Coloco, portanto, agora ainda que tarde, nesse texto, questões que me apareceram: e se no meio do nosso campo, nós recebermos convites, propostas para pensarmos juntos sobre alguma questão colocada por um outro pesquisador? O que fazemos? Que tipo de perguntas nos são feitas quando estamos entrevistando esses cientistas? O que elas nos informam sobre o momento dessas pessoas? E as nossas respostas, o que elas dizem sobre nós? O quanto nós estamos dispostos a trabalhar interdisciplinarmente com outros saberes tipo o biomédico? O quanto nós escrevemos para outras áreas em busca de diálogo ou nos propondo a sermos mais claros para outras áreas que não a nossa própria? Quais são os limites da relação que nós propomos e o que o outro faz com isso? Embora veja bastante sobre as interlocuções entre diferentes saberes, não vejo na mesma proporção o como propor esses diálogos.

O mais comum do meu campo de pesquisa certamente não era receber convites como esse. Tive só mais outras duas situações mais ou menos semelhantes, mas não eram sobre projetos de pesquisa. A maioria dos cientistas que entrevistei foram bastante convidativos e gentis, aspecto que Castro (2020) também experimentou ao investigar um centro de pesquisas clínicas. Depois pensei que as pessoas que fazem esse tipo de pesquisa precisam em muitos momentos estreitar laços, deixar reticências, para que seus estudos com milhares de pacientes sejam possíveis. É sempre preciso criar pontes entre as cidadelas. 

Ainda, fiquei reflexiva, pensando o quanto os temas que pesquisamos, as perguntas que nós fazemos são com o tempo absorvidas e transformadas por nós que estamos em constante interação com outros saberes científicos. Adquirimos vocabulários de quem estudamos e essas pessoas às vezes também querem aprender sobre os nossos e como antropóloga, eu aposto na nossa capacidade reflexiva (Ferreira, Brandão, 2021). 

Pessoalmente tenho desejo de que outros cientistas entendam a antropologia, mas ao mesmo tempo é preciso que ela também adentre espaços e aceite outros convites fora da sua cidadela. Já não sei mais se é um otimismo exacerbado, mas acho que alguns pensam como Afonso, reconhecem a importância da antropologia e entendem que ela pode contribuir com a sua perspectiva em outros espaços não tão familiares. Penso que assim, é possível construir mais “camas de gato” (Traweek, 1993) cada vez maiores, que são parte dos entrelaçamentos de áreas distintas, que promovem mais pontos de encontro. E isso é importante também para a antropologia que por vezes critica o saber biomédico com o seu linguajar também específico. Na nossa dialética não tão dialógica assim. Creio que em outra medida e proporção, mas certamente quando Afonso diz não entender o que falamos e escrevemos, ele escancara as barreiras inclusive linguísticas que a antropologia coloca nesse processo.


Referências

Castro, Rosana. Economias Políticas da doença e da saúde: uma etnografia da experimentação farmacêutica. 1 Ed. São Paulo: Hucitec, 2020.

Castro, Rosana. Mesmo sem comprovação científica…:Políticas de liberação da cloroquina. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, p. 1-12, 2021.

Fleischer, Soraya and Schuch, Patricia. Ética e regulamentação na pesquisa antropológica. Brasília: Letras Livres: Editora Universidade de Brasília. 2010.

Fleischer, Soraya. “Alfineteira humana”? As crianças na ciência do vírus Zika produzida em Recife/PE. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 26, 2023. DOI: 10.5216/sec.v26.75242. 

Latour, Bruno and Steve Woolgar. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 1997 [1988].

Martin, Emily. Anthropology and the cultural study of science. Science, Technology & Human Values, 23(1), p. 24–44, 1998.

Petryna, Adriana. When Experiments Travel: clinical trials and the global search for human subjects. Princeton: Princeton University Press, 2009. 258 p.

Sacramento, Igor, Allan Santos, and Roberto Abib. A doença como política da verdade: Bolsonaro, COVID-19, e o testemunho. In: Ciência em conflitos: negacionismo, desinformação e crise democrática.

Oliveria, Thaiane Moreira de, Reynaldo Aragon Gonçalves, and Roberto Kant de Lima. Belo Horizonte: EDOC Brasil. 2023.

Traweek, Sharon. Beamtimes and Lifetimes. The World of High Energy Physicists Cambridge, Mass.: Harvard University Press. 1988.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *