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Como Criar Figurações e Habitar uma Pesquisa STS Feminista: Um Manual Faça-você-mesmo

Já a algum tempo eu e minhas colegas do Labirinto (Laboratório de estudos socioantropológicos sobre tecnologias da vida, Universidade Estadual de Campinas, Brasil) estamos discutindo e praticando modos feministas de fazer pesquisa acadêmica. Para nós, vai muito além de priorizar leituras feministas. Isso é importante, mas tentamos construir práticas que se articulem com o que politicamente acreditamos e desejamos para a universidade e para o mundo. Um ponto importante é criar um ambiente de trabalho acolhedor, baseado em interações pessoais cuidadosas, evitando ao máximo reproduzir modos de trabalho classistas, racistas e misóginos, tão comuns à estrutura de poder acadêmica. Outro ponto é pensar como podemos experimentar propostas metodológicas que propiciem aberturas à diferença. A figuração, presente principalmente nas propostas de Donna Haraway, tem sido uma dessas experimentações.

Este é um manual faça-você-mesmo de como criar figurações e habitar uma pesquisa STS feminista. Ele é resultado destas discussões no Labirinto, e também da minha tese de doutorado.

Handmade collage of clippings from old science encyclopedias. Psychedelic and visceral scene made from illustrations of parts of the human body.

Colagem feita à mãocom recortes de antigas enciclopédias científicas. Cena psicodélica e visceral feita a partir de ilustrações de partes do corpo humano. Créditos: Clarissa Reche.

Figurações: De Onde Vem

Figuração é um procedimento metodológico que consiste em criar figuras, ou tropos. Tropos são figuras de linguagens como, por exemplo a alegoria, a hipérbole, a metonímia, a metáfora. Assim como Donna Haraway, muitas teóricas feministas que desenvolveram críticas sobre a ciência e tecnologia nas décadas do final do século XX apontaram que a criação de tropos, em especial de metáforas, compõem uma parte importante do próprio fazer científico, e são um ponto de observação privilegiado para compreender consequências éticas das elucubrações teóricas e experimentais da ciência.  Por exemplo, ao utilizar metáforas que remetem à dominação e violência para descrever os objetivos de uma pesquisa (explorar, des-velar, des-cobrir), a imagem que se constrói da natureza é como algo passível de ser tratada de tal forma.

A proposta metodológica da figuração, como descrita por Haraway, nos localiza novamente no centro de um procedimento básico da tecnociência, nos fazendo mais uma vez ficar com o problema. Além disso, Haraway aponta as origens de seu interesse por figuração na influência da herança católica em seu pensamento (Haraway, 2021, p. 114). Nas “semióticas do realismo cristão ocidental,” a figura de Cristo incorpora tanto as profecias passadas quanto as esperanças apocalípticas futuras (Haraway, 2018, p. 9). A proposta de Haraway é a utilização da figuração com o objetivo de, a partir do que existe, se engajar em um processo criativo de subversão dessa lógica temporal. Com as figurações, exercitamos uma dimensão especulativa em nossas pesquisas, na esperança de produzir pensamentos, práticas e mundos diferentes.

Figurações: O Que São

O que “figura” é o que “incorpora” (Haraway, 2018, p. 9), o que traz corpo, materialidade, e situacionalidade. As figurações são “entidades” (ibid., p. 8) que conectam diferentes dimensões do conhecimento, por exemplo, as dimensões da imaginação e do material. Figurações são “imagens performativas que podem ser habitadas” (ibid., p. 11).  Desse modo, as figurações também são:

  • uma mundificação obrigatória: “se você a habita, você não tem como não entender” (Haraway, 2021, p. 98);
  • um mapa de mundos que podemos contestar: “habitamos e somos habitados por figuras que mapeiam universos de conhecimento, prática e poder” (Haraway, 2018, p. 11);
  • lugares para onde você viaja: “você chega em algum lugar onde não tinha ido antes” (Haraway, 2021, p. 114);
  • um tempo-espaço específico: “minhas figuras ciborgues habitam um regime mutante de tempo-espaço que chamo de tecnobiopoder” (Haraway, 2018, p. 12).

Figurações: O Que Não São

As metáforas, os tropos, as práticas de figuração e narração são “muito mais do que decoração literária” (Haraway, 2018, p. 299). Por isso, ao confeccionar figurações, precisamos ficar atentos também ao que elas não são:

  • literais e autoidênticas: “as figuras não precisam ser representacionais e miméticas, mas devem ser trópicas” (Haraway, 2018, p. 11);
  • inocentes, sempre positivas ou negativas: “não é apenas sobre escolher uma entidade no mundo, algum tipo de objeto acadêmico interessante. Há uma catexia que precisa ser entendida” (Haraway, 2004, p. 338).

Figurações: O Que Fazem (Fazer)

Como ferramentas metodológicas para a pesquisa, as figurações produzem enraizamentos e conexões entre as pessoas e as histórias que estão sendo contadas, permitindo que possamos habitar histórias que, de outro modo, poderíamos facilmente apenas condenar e celebrar (Haraway, 2004, p. 1). O trabalho para confeccionar figurações é um trabalho de abertura de possibilidade para histórias sem um final determinado. Desse modo, as figurações fazem-fazer:

  • gaguejar, tropeçar, desagregar: “e é por isso que eles são criativos. É por essa razão que você chega em algum lugar onde não tinha ido antes, porque algo não funcionou” (Haraway, 2021, p. 114);
  • deslocamentos rumo a incertezas: “figurações devem envolver pelo menos algum tipo de deslocamento que possa perturbar identificações e certezas” (Haraway, 2018, p. 11);
  • afastamentos das histórias de apocalipse/salvação: “ler esses mapas com letramentos mistos e diferenciais e sem a totalidade, as apropriações, os desastres apocalípticos, as resoluções cômicas e as histórias de salvação do realismo cristão secularizado” (Haraway, 2018, p. 11);
  • aglutinações, configurações, e reconfigurações materializadas: “por exemplo, esta família ou parentesco de entidades, chip, gene, feto, bomba etc. (é uma lista indefinida), trata de localização e especificidade histórica, e trata de uma espécie de aglutinamento (assemblage), de uma espécie de conexão entre a figura e o sujeito” (Haraway, 2004, p. 338).

Conhecendo Algumas Figurações…

Ciborgue

Ciborgue é a figuração que povoa o clássico “Manifesto Ciborgue:­ Ciência, Tecnologia, e Feminismo­ Socialista no Final do Século XX” (Haraway 1985). Nascide da teoria socialista-feminista pós-moderna e não naturalista, Ciborgue também tem em sua genealogia a tradição utópica de imaginar o mundo sem gênero, sem gênesis e sem fim (Haraway, 1991, p. 150). Ser híbrido por excelência, Ciborgue habita a dissolução das fronteiras entre ser humano e máquina, humano e animal, natureza e cultura. Mantendo-se longe da tecnofobia/pessimismo puro e da tecnofilia/otimismo puro, Haraway se alia com Ciborgue para traçar possibilidades de escapar do essencialismo de identidades fixas e fixadas. A existência de Ciborgue como ficção e experiência vivida muda o que conta como “experiência das mulheres” ao afirmar que identidades são contraditórias, parciais e estratégicas.

Polegarzinha

A Polegarzinha tem a cabeça entre os dedos. É com ela que damos as mãos para caminhar por entre a pesquisa de Gabriela Paletta (2019) e enfrentar o viscoso mundo dos menstruapps, os aplicativos de celular para monitoramento e controle do ciclo menstrual. Em sua dissertação, Paletta confeccionou a figuração Polegarzinha como metodologia de pesquisa para se aproximar e analisar alguns menstruapps gratuitos populares, a fim de investigar como a tecnologia se “incorpora,” se “faz corpo,” experimentando—com ajuda de Polegarzinha—como “ciclo menstrual” e “menstruação” estão sendo produzidos e performados nessas plataformas. Polegarzinha não tem os dedões entorpecidos: essa figuração de uma jovem estudante tem polegares ágeis e precisos. Novas contrapartidas do mundo chegam até ela. A mundificação que Polegarzinha nos convida a fazer é a partir da possibilidade de uma espécie de resistência contemporânea ao amortecimento que o digital tem cada vez mais nos apresentado como prática de vida.

A Mancha

Peço licença para contar um pouco da minha experiência com figurações durante a pesquisa que realizei no doutorado. Fiz uma etnografia junto com antropólogas, pesquisando experiências de menstruação durante o trabalho de campo que elas vivenciaram, em especial quando estavam em território indígena (COSTA, 2024). Como você pode imaginar, essas experiências foram sistematicamente suprimidas do conhecimento acadêmico que essas antropólogas produziram, mesmo quando foram boas entradas de campo. Isso porque a menstruação muitas vezes é associada a um corpo menos produtivo, e isso não é diferente no trabalho acadêmico. Para conseguir caminhar junto com esse tema tão sensível, eu confeccionei a figuração “mancha.” Nas entrevistas com as antropólogas, a memória da mancha de sangue menstrual sempre aparecia. Quem habita a mancha sabe do que eu estou falando. E essa comunicação sensível e potente foi importante para que eu conseguisse transitar com segurança pelas complexidades da menstruação.

Criando um Álbum de Figurinhas da Parentada: Algumas Perguntas para Começar

Quando utilizadas como estratégias metodológicas para provocar pensamentos e práticas críticas, as figurações geram uma abertura de horizontes experienciadas “na carne.” Para Braidotti, as figurações compõem um projeto de criatividade com o objetivo de estimular uma mudança qualitativa nas consciências ao serem veículos para o vislumbre de outros modos de pertencimento (Thiele, 2021, p. 232). As figurações e suas aglutinações/reconfigurações trabalham desde dentro das histórias que estão sendo contadas, não de fora, em uma crítica descorporificada, e, desse modo, nos convidam a nos deslocarmos, nos aproximarmos, a olhar desde outros ângulos. O tropeço está justamente nesse movimento: estamos acostumados com a crítica reflexiva que, olhando para o espelho, reflete a mesma imagem que observa.

As figurações não são espelhos. Elas são entidades/criaturas material-semióticas que nos ajudam a complexificar o modo como sentimos e apr(e)endemos diferentes dimensões do mundo. Elas afetam nossos sentidos, permitindo que fiquemos atentos a problemas concretos (Thiele, 2021, p. 231). Por isso, as figurações também não são inocentes. Elas coletam esperanças e medos, e mostram possibilidades e perigos (Haraway, 2004, p. 1). As aglutinações (ou grupos de parentesco) que as figurações formam percorrem linhagens que estão acontecendo com o objetivo de desfamiliarizá-las e propor uma nova reconfiguração, que também não é inocente, nunca. Existe uma forte conexão entre quem analisa e escreve, o objeto da escrita e as figurações produzidas. As implicações desses vínculos devem ser escavadas, pois esses vínculos são apenas um modo de estar no mundo, e é importante entender porque essas aglutinações estão sendo feitas, e não outras (Haraway, 2004, p. 338).

Para fechar este manual, compartilho algumas perguntas que podem te ajudar a criar seu álbum de figurinhas da parentada. As perguntas abaixo podem ser colocadas para cada figuração que você estiver elaborando, para ajudar com que elas ganhem corpo, sejam encarnadas.

  • Você habita essa figuração? Como?
  • Para onde ela te fez viajar?
  • Como é o mundo que essa figuração mapeia?
  • Qual o tempo-espaço desta figuração?

Bom divertimento!


Referências

COSTA, Clarissa R. N. da. Manchando: (o que) fazer (com) a menstruação. Estratégias e experimentos para vazar questões feministas através das tecnociências. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Camṕinas, Campinas, 2024.

HARAWAY, Donna J. A cyborg manifesto: science, technology, and socialist-feminism in the late twentieth century. In: HARAWAY, Donna. Simians, cyborgs, and women: the reinvention of nature. New York: Taylor & Frances, 1991.

HARAWAY, Donna J. Modest _ Witness @ Second _ Millennium. FemaleMan©_Meets_OncoMouseTM. Second Edition. New York: Routledge, 2018.

HARAWAY, Donna J. O manifesto das espécies companheiras: cachorros, pessoas e alteridade significativa. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2021.

HARAWAY, Donna J. The Haraway Reader. New York: Routledge, 2004.

THIELE, Kathrin. Figuration and/as Critique in Relational Matters. In: HAAS, Annika Haas et al (org). How to Relate. Knowledge, Arts, Practices. Bielefeld: Transcript, 2021.

PALETTA, Gabriela Cabral. Menstruapps na era farmacopornográfica: aplicativos de monitoramento de ciclo menstrual e interseções entre corpos, máquinas e tecnopolíticas de gênero. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

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