Transformações conceituais e agendas temáticas emergentes tornam-se bastante perceptíveis em conferências de antropologia da ciência e da tecnologia. Voltar a atenção àquelas realizadas no Sul global permite compreender experimentos científicos pós-coloniais dentro de nosso próprio campo disciplinar (Kervran, Kleiche-Dray & Quet, 2018; Anderson, 2017; Law & Lin, 2017).
Um exemplo disso foi a 8ª edição do encontro bianual da Rede Brasileira de Antropologia da Ciência e da Tecnologia, conhecida como ReACT (Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia), entre 22 e 26 de novembro de 2021. Devido à pandemia de COVID-19, o evento foi pela primeira vez realizado em formato virtual e contou com um recorde de 1.142 participantes, 395 trabalhos apresentados em 29 seminários temáticos, 16 mesas redondas e mais de 5.000 visualizações online ao longo da semana.[1] Organizada pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no estado de São Paulo, a conferência se propôs a discutir dois temas relacionados: como a antropologia da ciência e da tecnologia no Brasil pode ajudar a construir compreensões críticas do capitalismo tecnocientífico; e como as alianças entre diferentes modos de existência e práticas de conhecimento (científicas e outras) podem contribuir para forjar futuros possíveis que levem em conta socialidades humanas e outras-que-humanas mutuamente constituídas.
Embora tais questões não sejam novas nos meios antropológicos, elas assumem contornos particulares entre antropólogas e antropólogos brasileiros que estão imersos em um contexto político nacional no qual empreendimentos corporativos e estatais cada vez mais incentivam e encobrem a extração ilegal de madeira, a mineração e invasões que ameaçam direitos territoriais de indígenas, quilombolas e povos tradicionais e violam direitos de comunidades nas periferias urbanas.
Diante desse cenário alarmante, a ReACT buscou ao longo dos anos criar um espaço dialógico com pensadores e ativistas envolvidos nas lutas por suas terras e pelo reconhecimento de seus modos de vida. Na VIII ReACT esse esforço se mostrou ainda mais acentuado, pois o próprio evento girou tematicamente em torno da ideia de alianças entre a antropologia e outros tipos de práticas de conhecimento, e estruturalmente em torno de diálogos junto a ativistas, antropólogos brasileiros e seus pares no exterior (principalmente colegas falantes de português e espanhol da América Latina, América do Norte e Europa).[2]
Em vez dos habituais conferencistas anglófonos, o evento optou por duas mesas redondas por dia. Estas, intituladas “diálogos”, foram pré-gravadas, editadas e legendadas em português para se tornarem acessíveis a um público brasileiro mais amplo. Tais diálogos, apresentados nas tardes ao longo de todo o evento, assumiram o formato de conversas, entrevistas ou comentários sobre trabalhos publicados recentemente. Eles eram então comentados em português ou espanhol nas sessões noturnas síncronas, chamadas de “diálogos cruzados.” Nas discussões realizadas entre colegas antropólogos, os temas que surgiam eram relevantes sobretudo dentro de nossas fronteiras disciplinares: antropologia dos dados e comparações; dispositivos etnográficos feministas em estudos de ciência e tecnologia; feminismos moleculares em laboratórios: ciência e devires; algoritmos, raça e a política do corpo; afeto, cuidado e a tecnopolítica das paisagens; práticas, técnicas e ontologias da domesticação; taxidermia e a conversão de animais em mercadorias; as economias dos vírus: tecnociência e capital; infraestruturas das finanças. Assim, em termos de uma comunidade de antropólogos da ciência e da tecnologia (conectados em rede), a questão era como melhorar a sensibilidade e as ferramentas etnográficas para fazer ver os emaranhados do que Isabelle Stengers (2009) chama de tríade – Ciência, Estado e Empresário.
No entanto, quando os diálogos envolviam não apenas antropólogos, como também ativistas, artistas e pensadores situados fora de tais fronteiras disciplinares, vislumbrava-se um tipo diferente de topologia: não uma rede, mas um espaço fluido em que a prática antropológica seria incitada à transformação (Mol, Law, 1994). O que ficou claro nas conversas com artistas indígenas e afro-indígenas, pescadoras e pescadores na Baía de Guanabara no Rio de Janeiro e nos manguezais de Salvador, e pesquisadores caiçara na costa de São Paulo, é que o aumento de ações ilegais incentivadas por autoridades governamentais tem levado os antropólogos da ciência e da tecnologia brasileiros a repensar sua prática, em termos de uma pesquisa engajada que forja alianças com quem primeiro sente os efeitos de práticas corporativas deletérias.
Se um passo importante nessa direção é reconhecer que as práticas de conhecimento metódicas e sistemáticas através do tempo e de culturas devem ser consideradas como ciências (Lloyd and Villaça, 2020), o esforço seguinte deve ser o de considerar os desafios metodológicos de uma pesquisa científica conjunta, que atravessa diferentes mundos e práticas de conhecimento. Um exemplo são as comunidades pesqueiras caiçaras da Juréia, no litoral sul de São Paulo, que há anos sofrem pressão para se retirarem de suas terras, que em 1986 foram transformadas em uma unidade de conservação de proteção integral. Este estatuto legal proíbe a ocupação humana, uma vez que se baseia em uma ideia de natureza intocada. Como parte do esforço para o Estado reconhecer sua longa presença na região, as lideranças locais aderiram a um projeto de pesquisa colaborativa para produzir dados de geoprocessamento que indicassem padrões de ocupação do solo. Na VIII ReACT, acadêmicos e pesquisadores caiçaras discutiram suas colaborações de longo prazo, simultaneamente políticas e científicas, levantando questões sobre a disputa por verdades pragmáticas e o compromisso antropológico com a justiça (Almeida, 2021). Essas colaborações questionam as assimetrias entre os saberes dos povos tradicionais e os acadêmicos que se relacionam com eles, ampliando o que se considera como ciência. É exatamente isso que antropólogos indígenas argumentam quando apontam para uma encruzilhada política na antropologia brasileira. Repensar criticamente uma ideia engajada e ampliada de ciência implica enfrentar as questões levantadas por antropólogos indígenas e quilombolas que exigem o devido reconhecimento de suas próprias práticas de conhecimento, sistemáticas e metódicas, na criação de projetos de pesquisa relevantes, inovadores e críticos.
Ambos os movimentos – ampliar a ideia de ciência por meio de colaborações de pesquisa de longo prazo entre acadêmicos e movimentos sociais; e garantir a institucionalização de antropólogos indígenas e quilombolas, e daqueles que vêm das periferias urbanas de um país profundamente racista – possuem grande potencial teórico. Também reforçam a responsabilidade ética da antropologia da ciência e da tecnologia praticada no Brasil e no Sul global de forma mais geral.
Uma ciência ampliada apresenta desafios metodológicos próprios e implica na reavaliação de como questões de pesquisa, equipes e orçamentos são delineados. O que acontece com as questões de pesquisa sobre socialidades humanas e não-humanas quando se leva em conta o que dizem as marisqueiras da Ilha de Maré de Salvador sobre os “monstros invisíveis do desenvolvimento” que habitam seus manguezais, e que convivem e perturbam outros seres mais antigos, visíveis e invisíveis (Paraguassu, 2021)? Como suas ontologias podem ajudar a desenhar questões de pesquisa conjunta que sejam relevantes para discussões políticas em torno de questões ambientais? Qual formato as equipes e seus orçamentos podem assumir quando a pesquisa é conduzida ao lado de pesquisadores locais que produzem dados sobre desastres sociais e ambientais? Alguns exemplos são as equipes compostas por povos indígenas como os Juruna-Yudjá, cujo modo de vida está profundamente conectado aos regimes de água do Rio Xingu impactados pela hidrelétrica de Belo Monte; ou as comunidades pesqueiras do Rio Doce, que convivem com a dor do derramamento de rejeitos da mineração que atravessaram dois estados antes de alcançar o Atlântico (Mantovanelli, 2020; Creado, Helmreich, 2018). A intensificação de parcerias institucionais e alianças internacionais possibilita a composição de equipes de pesquisa que engajem acadêmicos em discussões já em curso, conduzidas por quem está enraizado em seus territórios, sobre como imaginar e produzir futuros comuns.
Novamente, essas não são questões novas para os estudiosos de CTS, mas a proximidade logística, linguística e afetiva dos movimentos sociais inspira a antropologia no Sul global a assumir um compromisso político com essa abordagem. Esse potencial, no entanto, não é prontamente reconhecido pelas agências de fomento brasileiras, que tendem a mimetizar o que acreditam ser as melhores práticas internacionais em pesquisa, com base em uma visão ultrapassada (e subserviente) de ciência e tecnologia (Morawska et al., 2021). Nesse cenário institucional, não há lugar para colaborações conjuntas com aqueles que são vistos como objetos de pesquisa, nunca colegas.
Talvez a tarefa para uma antropologia da ciência e tecnologia engajada em tempos catastróficos seja encontrar formas institucionais de fazer essas colaborações acontecerem. O atual contexto requer reorganizar e repensar a resistência de tal forma que permita o contágio de ideias, não apenas por meio de várias combinações regionais dentro da academia, mas também em diferentes mundos. Como diz o pensador indígena Ailton Krenak (2016), devemos ser capazes de vazar fronteiras ontológicas, como uma peneira, para podermos transitar entre mundos. Só assim será possível o surgimento de uma ciência expandida.
Notas
[1] O número de participantes inscritos na reunião anterior da ReACT em 2019 foi de 620, com 183 trabalhos apresentados em 11 seminários temáticos. A participação quase dobrou em 2021, pois o evento foi realizado online e não houve custos para os participantes em termos de transporte e hospedagem. Como é de praxe na ReACT, tampouco foram cobradas taxas de inscrição. Como o financiamento para as humanidades foi reduzido nos últimos anos no Brasil, o orçamento para todo o evento fornecido pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP 21/02818-7) foi equivalente a aproximadamente 500 dólares. A organização do evento, portanto, teve um quadro reduzido de 2 professores e 5 alunos de pós-graduação voluntários da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
[2] Os palestrantes não brasileiros nas mesas redondas foram baseados em instituições da Colômbia (1), Argentina (2), Noruega (1), Canadá (1), Reino Unido (2) e Estados Unidos (4), 65% dos quais apresentaram seu trabalho em espanhol ou português. Os coordenadores não brasileiros dos 29 seminários temáticos eram de instituições do México (2), Peru (1), Argentina (1), Colômbia (1) e Reino Unido (1). 91% dos trabalhos apresentados nos seminários temáticos foram de brasileiros, enquanto apenas 9% foram de acadêmicos da Europa (12), Estados Unidos e Canadá (6) e América Latina (30), todos falando português ou espanhol. Como se sabe, a língua ainda é uma barreira para uma maior participação em conferências de antropologia não anglófonas.
Referências
Almeida, M. W. B. (2021) Caipora e outros conflitos ontológicos. São Paulo: Editora UBU.
Anderson, W. (2017) Postcolonial Specters of STS. East Asian Science, Technology and Society: An International Journal, 11:2, 229-233, DOI: 10.1215/18752160-3828937
Creado, E. S. J., & Helmreich, S. (2018) Uma onda de lama: viagem de águas tóxicas, de Bento Rodrigues ao Atlântico brasileiro. Revista Do Instituto De Estudos Brasileiros, (69), 33-51. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p33-51
Kervran, D. D., Kleiche-Dray, M. & Quet, M. (2018) Going South. How STS could think science in and with the South? Tapuya: Latin American Science, Technology and Society, 1:1, 280-305, DOI: 10.1080/25729861.2018.1550186
Krenak, A. (2016) As alianças afetivas. Entrevista a Pedro Cesarino. In: Incerteza Viva. Dias de estudo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo.
Law, J. & Lin, W. (2017) Provincializing Sts: Postcoloniality, Symmetry, and Method. East Asian Science, Technology and Society: An International Journal, 11(2), 211-227, DOI: 10.1215/18752160-3823859
Lloyd, G. E. R. & Vilaça, A. (2020) Science in the Forest, Science in the Past. HAU Books.
Mantovanelli, T. (2020). “Quanto vale a vida?” Os Mebengokre-Xikrin do Bacajá e os Juruna da Volta Grande do Xingu contra a engenharia de cálculo e setores técnico-empresariais de Belo Monte. In: Villela, J. M.; Vieira, S. de A. (Org.). Insurgências, ecologias dissidentes e antropologia modal. Goiânia: Editora da Imprensa Universitária, 1, 95-126.
Mol, A., & Law, J. (1994). Regions, Networks and Fluids: Anaemia and Social Topology. Social Studies of Science, 24(4), 641–671. https://doi.org/10.1177/030631279402400402
Morawska, C., Campos, A. C., Cardoso, B. C., Paulino, C. (2021) A transversalidade entre ciências sociais e áreas tecnológicas: por uma ecologia das práticas na política científica nacional. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 36 (107). https://doi.org/10.1590/3610704/2021
Paraguassu, E. (2021) Os monstros invisíveis do desenvolvimento contra um território sagrado. Políticas da Pandemia: Mulheres, Economia e Saúde. imuê: Instituto Mulheres e Economia.
Stengers, I. (2009) Au temps des catastrophes. Résister à la barbarie qui vient, La Découverte.