Durante meu mestrado comecei a pensar na hipótese de que algumas plataformas de mídias sociais possuiam sistemas e ferramentas para orientar o comportamento dos usuários em uma determinada direção. Por mais que isto fosse senso comum entre a comunidade da tecnologia e sociedade, não era uma hipótese fácil de confirmar com dados empíricos. Foi aí que decidi experimentar a análise de patentes.
Na pesquisa que realizei para a minha dissertação do mestrado em ciências sociais, em 2019, analisei patentes da Facebook Inc. (hoje Meta) com o objetivo de identificar e categorizar tecnologias que fossem capazes de modular o comportamento humano na plataforma de mídia social da empresa (Machado, 2019). Já vinha me aprofundando no estudo de sistemas algorítmicos e sentia falta de uma metodologia que me ajudasse a entender o funcionamento desses sistemas, que as empresas de tecnologia se esforçam para ofuscar. Utilizei os pedidos de patentes registrados no escritório americano, USPTO, como a principal fonte de documentos da minha pesquisa. Meus estudos acadêmicos sempre foram nas áreas de comunicação e ciências sociais, e esse foi o meu primeiro contato direto com esse tipo de documentação. Pela leitura das patentes, eu consegui ter um conhecimento aprofundado das operações e dinâmicas de funcionamentos dos sistemas que estruturam a plataforma de rede social. Os documentos explicaram como funcionam alguns modelos que estruturam o News Feed, como a plataforma conecta usuários e objetos na rede social, e até mesmo o que a plataforma leva em conta para decidir qual resultado de pesquisa aparecerá primeiro.
De tempos em tempos uma patente de alguma tecnologia assustadora é citada em jornais e sites de tecnologia, como no caso da patente de “gaiolas para trabalhadores” registrada pela Amazon (Hamilton, 2018), ou o carro que ao invés de janelas teria telas reproduzindo conteúdo, registrado pela Apple (Chadwick, 2022), por outro lado o uso de patentes para pesquisas na antropologia e nas ciências sociais não é tão comum quanto eu imaginava (Reymond, 2021). Ainda assim, o estudo das informações contidas nesses documentos pode ser muito útil para cientistas sociais dispostos a estudar o desenvolvimento de sistemas algorítmicos para entender melhor como esses objetos técnicos podem afetar a sociedade.
November 1928 Cover of Science and Invention (via Wikimedia Commons).
Formas de se Estudar Patentes
As patentes são um conjunto de direitos de propriedade intelectual concedidos pelo Estado a um inventor ou titular de uma invenção, que lhe dá o direito exclusivo de produzir, usar e vender a invenção por um período determinado de tempo. Esse direito impede que outros produzam, vendam ou usem esses mesmos produtos sem autorização do titular da patente (USPTO, 2023).
O patenteamento de tecnologias digitais tem um grande impacto na ciência. Para Sergio Amadeu da Silveira (2014), as patentes são obstruções e seu uso em software tem consequências negativas para qualquer entidade que não seja o mercado. O autor afirma que “a concessão do monopólio do uso de um arranjo lógico por um período de 20 anos” (Silveira, 2014: 577) pode “bloquear o uso científico e tecnológico de soluções fundamentais para o avanço da Ciência e Tecnologia” (Silveira, 2014: 577), além de estimular a corrida para patentear soluções óbvias apenas como forma de se proteger de ações judiciais de outras empresas e, acima de tudo, concentrar o poder da pesquisa em empresas que possam investir na estrutura jurídica das tecnologias de patenteamento.
Na área de inovação o estudo de patentes é rotineiro. Na minha própria universidade, a Universidade Federal do ABC, há um departamento dedicado ao patenteamento, com mentores para ajudar a usar diversas bases de patentes e auxiliar alunos que queiram patentear suas invenções. No entanto, esses departamentos dificilmente conversam com a sociologia, antropologia, comunicação ou políticas públicas. Grande parte das pesquisas com análise de patentes usa como metodologia mineração de dados e outras automações para agrupar, criar clusters e mapear tecnologias existentes com o intuito de ter um panorama geral das invenções em diferentes setores, e também para localizar lacunas onde invenções possam ser inseridas, ou onde há a necessidade de se desenvolver novas tecnologias que ainda não foram patenteadas (Abraham BP, Moitra SD, 2001; Abbas, A., Zhang, L., & Khan, 2014). Para os pesquisadores com interesses em usar patentes com outros propósitos – no meu caso, analisar criticamente o desenvolvimento de tecnologias que funcionem para modular o comportamento humano – essas metodologias não são suficientes.
De fato, patentes são documentos delicados de se estudar. O texto da patente não é escrito para uma compreensão fácil para todos. É um texto tecnológico-jurídico, com diversas nuances e jargões específicos da área. Preciso o suficiente para afirmar o direito de propriedade sobre a propriedade intelectual e vago o suficiente para capturar usos inesperados (Shapiro, 2020). É quase um quebra-cabeça de informações, onde algumas peças estão ali só para impedir que ele seja montado rapidamente. As informações vão se mostrando em camadas e é necessário uma leitura atenta e crítica. Por outro lado, cada documento de patente deve seguir uma estrutura específica (estipulada pelos escritórios de patentes), o que facilita a comparação e agregação de informações de diferentes patentes de forma sistematizada.
A sistematização da escrita das patentes pode ser usada a nosso favor. No caso da minha pesquisa, que focava nas patentes da Facebook Inc., por mais que as inovações patenteadas mudassem a cada documento, elas eram descritas a partir de estruturas base da plataforma, como os sistemas que funcionam como o esqueleto do News Feed e das funções de busca.
Para se usar patentes como fonte de pesquisa, é preciso entender suas contradições, problemáticas, e lembrar que elas são registradas por diferentes motivos. O mais óbvio seria para proteger uma invenção, porém patentes também são registradas como uma ofensiva aos concorrentes: para impedir que outra empresa desenvolva uma determinada invenção que seja lucrativa (por mais que a empresa que a patenteou não tenha planos de desenvolve-la). Também é muito comum que uma empresa registre uma patente apenas para agregar valor de mercado, visto que mesmo que uma invenção não seja lançada, sua patente segue como parte do portfólio de ativos intangíveis dessa empresa. Para Shapiro (2020), patentes, quando aceitas e registradas com sucesso, são performativas, “conferem propriedade sobre futuros usos ao comunicar (divulgar) informações” (Shapiro, 2020: 754) e são, por natureza, de formato antecipatório. O autor resgata Kinsley (2010) e o conceito de políticas da antecipação para afirmar que as dinâmicas do patenteamento de inovações fazem parte de “micromanobras corporativas para colonizar possibilidade e potencial” (Shapiro, 2020: 768).
Patentes nas Ciências Sociais e Humanidades
Nos últimos anos, a partir de pesquisas utilizando patentes foi possível compreender temas e tópicos recorrentes no desenvolvimento da plataforma de vigilância da Palantir (Iliadis & Acker, 2021) ou mesmo mostrar a capacidade de influenciar algumas interações homem-máquina presentes em tecnologias desenvolvidas para smart cities (Shapiro, 2020). No entanto, o uso de patentes como documentação para pesquisas acadêmicas ainda não é amplamete utilizado por cientistas sociais. E por que?
Há uma informação relevante que talvez nos ajude a responder a pergunta: o fato de uma patente ter sido registrada, não significa que a tecnologia descrita naquele documento foi de fato criada ou está em uso. Puramente pela leitura da patente não há como obter essa informação. Então qual utilidade teriam as informações sobre tecnologias que não sabemos se existem ou não — em sua forma concretizada ao menos — no estudo das suas interseções com a sociedade?
É uma questão interessante de se levantar. No entanto, é também no campo das contradições onde é possível encontrar a importância de se estudar esses documentos. Por exemplo: por que certa empresa decidiu investir dinheiro e mão de obra para registrar uma tecnologia específica? De fato, há relatos de profissionais da área que contam que empresas os pagam para desenvolver tecnologias para serem patenteadas apenas para aumentar seu portfolio, sem dar muita atenção ao que foi desenvolvido (Watkins, 2022). Mas se ao agruparmos dezenas de patentes da mesma empresa, encontrarmos uma mesma lógica, ferramenta, tecnologia, repetidas vezes, seria esse o caso? Notar que nos últimos anos uma empresa duplicou o número de patentes de uma determinada função de sua plataforma é uma informação relevante, pois pode indicar em que direção a equipe de desenvolvimento de produto da empresa está caminhando. Acima de tudo, é essencial pontuar que a pesquisa de patentes, para a cientista social, não pode parar apenas na análise documental. Os documentos dão pistas e mostram caminhos que podem ser seguidos para uma análise mais completa de questões complexas.
Na minha pesquisa, observar o que difere entre o texto apresentado como justificativa para a criação e patenteamento daquela invenção, e o que o documento propõe de fato como inovação, também foi uma análise interessante pois eu pude procurar por contradições no discurso da empresa. Consegui identificar, por exemplo, que situações ou ferramentas que façam com que o usuário não interaja muito na plataforma são vistas como um problema a ser resolvido por múltiplas invenções patenteadas pela empresa. O próprio ato de digitar por vezes é descrito como uma “entrada incomoda de múltiplos caracteres” (Lindsay & Rajaram, 2017: 2) e é apontado como uma das razões para a invenção de uma nova tecnologia capaz de fazer sugestões assertivas de texto para o usuário escolher enquanto oculta a opção para se usar o teclado para escrever seu próprio texto. Um exemplo do texto da patente:
“Por exemplo, para gerar um posto usando técnicas convencionais, o usuário freqüentemente precisa inserir um número significativo de traços ou pressionar botões para inserir o conteúdo do posto. Esta entrada incômoda de múltiplos caracteres utilizando pequenos dispositivos de entrada de um dispositivo de computação móvel pode desencorajar o uso do sistema de rede social em parte devido ao inconveniente de digitar um número significativo de caracteres” (Lindsay & Rajaram, 2017: 2)
Ilustração presente na patente US20170206194A1, Determining phrase objects based on received user input context information (Lindsay & Rajaram, 2017). Creative Commons.
Múltiplos sistemas de rastreamento para analisar, por exemplo, a emoção do usuário e seus dados de localização também são sugeridos como parte do sistema algorítmico que tem que ser reorganizado para que a tecnologia descrita na patente funcione de forma assertiva. O texto da patente também mostra que o que a empresa entende como uma sugestão bem sucedida e valiosa – isto é, que levará à interação do usuário com os botões sugeridos – leva em conta os objetivos da empresa, de terceiros e dos anunciantes.
A breve análise das informações contidas nessa patente já nos dá dicas sobre como a empresa pode utilizar o suposto desejo dos usuário por eficiência e rapidez ao escrever um post para desenvolver tecnologias que aumentem o uso de ferramentas de rastreamento que tornem mais fácil direcionar o comportamento do usuário de uma forma que seja interessante para a empresa e seus anunciantes.
Desafios de se Estudar Patentes
São múltiplas as possibilidades de informações que podem ser absorvidas a partir de uma patente. As contradições presentes em estuda-las a partir das ciências sociais, em pesquisas que não são voltadas para o mercado, também são diversas. Para Shapiro (2020: 769), “Se as patentes são uma arma nas lutas corporativas para colonizar o futuro urbano, então elas também podem ser usadas contra seus titulares para articular precisamente para onde não devemos nos dirigir.”. Portanto, devemos enxergar esses documentos como possibilidades de futuro e decidir como utiliza-los a partir dos nossos próprios objetivos.
Na minha experiência, o uso de informações sobre patentes é uma forma de se apropriar de um tipo de informação e conhecimento que costuma ser utilizado em benefício do mercado e usá-lo como fonte e ferramenta para ter um entendimento mais preciso do que as empresas estão propondo como possibilidades de futuros tecnológicos.
Referências
Abbas, A., Zhang, L., & Khan, S. U. (2014). A literature review on the state-of-the-art in patent analysis. World Patent Information, 37, 3-13.
Abraham BP, Moitra SD (2001) Innovation assessment through patent analysis. Technovation 21(4): 245–252.
Chadwick, J. (2022). Apple Car could be windowless, patent suggests | Daily Mail Online. https://www.dailymail.co.uk/sciencetech/article-10836423/Apple-Car-windowless-patent-suggests.html
França, R. O. (1997). Patente como fonte de informação tecnológica. Perspectivas Em Ciência Da Informação, 2(2). http://portaldeperiodicos.eci.ufmg.br/index.php/pci/article/view/636
Hamilton, I. A. (2018). People are horrified by an Amazon patent that puts workers in cages—But an Amazon exec said even “bad ideas” get submitted. Business Insider. https://www.businessinsider.com/amazon-defends-worker-cage-patent-that-was-recently-unearthed-2018-9
Iliadis, A., & Acker, A. (2021). The Seer and the Seen: Surveying Palantir’s Surveillance Platform. https://doi.org/10.2139/ssrn.4129583
Kinsley, S. (2010). Representing ‘Things to Come’: Feeling the Visions of Future Technologies. Environment and Planning A: Economy and Space, 42(11), 2771–2790. https://doi.org/10.1068/a42371
Lindsay, R. T., & Rajaram, G. (2017). Determining phrase objects based on received user input context information (United States Patent No. US20170206194A1). https://patents.google.com/patent/US20170206194A1/en?oq=+United+States+Patent+Application+20170206194+
Machado, D. F. (2019). MODULAÇÕES ALGORÍTMICAS: uma análise das tecnologias de orientação de comportamento a partir das patentes do Facebook [Dissertação (Mestrado)]. Universidade Federal do ABC.
Reymond, D. (2021). Patents information for humanities research: Could there be something? Iberoamerican Journal of Science Measurement and Communication, 1(1), Article 1. https://doi.org/10.47909/ijsmc.02
Shapiro, A. (2020). ‘Embodiments of the invention’: Patents and urban diagrammatics in the smart city. Convergence: The International Journal of Research into New Media Technologies, 26(4), 751–774. https://doi.org/10.1177/1354856520941801
Silveira, S. A. da. (2014). Entre Software e Genes: A resistência ao paradigma do conhecimento patenteado │ Between software and genes: Resisting the patented-knowledge paradigm. Liinc em Revista, 10(2), Article 2. https://doi.org/10.18617/liinc.v10i2.753
USPTO. General information concerning patents. https://www.uspto.gov/patents/basics/general-information-patents
Watkins, N. (2022, March 15). Inside Big Tech’s Race to Patent Everything. Wired. https://www.wired.com/story/big-tech-patent-intellectual-property/
