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Quando o Sexo Vira uma Questão de Estado: A Peciagrafia como Método Qualitativo para Análise de Processos Jurídicos

Nos últimos dez anos, venho realizando pesquisas etnográficas sobre as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre identidades sexuais no sistema judiciário brasileiro. Apesar das diferenças neste tópico, sempre tive uma mesma pergunta norteadora: como o STF e os movimentos sociais performam o sexo como uma questão do Estado?

Essa pergunta é diretamente derivada do trabalho de Annemarie Mol (2008). A autora propõe o conceito de política ontológica, segundo o qual devemos considerar as condições de possibilidade com que vivemos. Estas não são dadas como ponto de partida, uma vez que a realidade não precede as práticas banais em que as interações ocorrem, mas é moldada por elas. Este conceito está intrinsecamente relacionado à noção de que a realidade não pode ser entendida enquanto plural—ou seja, uma realidade é significada a partir de diversos pontos de vista—mas como múltipla: a realidade é colocada em ação através de sua performance. Em outras palavras, ela depende do sítio onde é realizada. Se o alteramos, a performance da realidade e os seus possíveis efeitos são alterados. Quando falamos de identidades sexuais e de gênero, é importante nos centrar na forma como diferentes sítios (de uma pequena para uma grande escala) modificam a forma como o sexo é colocado em ação como uma questão do Estado. Assim, para compreender o Supremo Tribunal Federal brasileiro, primeiro voltei minha atenção para espaços e práticas locais que tornaram possível que questões relacionadas ao sexo acabassem por ser entendidas/performadas como questões de Estado no STF. Assim, resta a pergunta: como é possível rastrear essas práticas e as mudanças nas perguntas de interesse provocadas a cada mudança de sítio?

A primeira parte da minha resposta foi focalizar meu trabalho em um conjunto de processos jurídicos de um grupo de assistência jurídica universitária gratuita, o G8-Generalizando (G8-G). Através do projeto “Direito à Identidade: Viva seu nome!,” o G8-G inovou ao articular argumentos e conhecimentos jurídico-psicológicos para produzir uma alternativa judicial baseada na despatologização das identidades de pessoas travestis[1] e trans. Explico. No processo de tornar o sexo uma questão do estado, houve um constante esforço de tradução do G8 das demandas do movimento de pessoas travestis e trans no decorrer dos 6 anos que o projeto foi mantido. A partir de uma recusa ativa de produção de provas judiciais que buscariam patologizar as pessoas assistidas pelo projeto—como o “laudo médico psiquiátrico comprovando o diagnóstico de transexualismo (CID-10 F640)” requerido pelo juiz—o G8-G produziu uma alternativa legal baseada na violência física-psicológica sofrida pelas pessoas trans e travestis ao serem chamadas pelo nome de registro,[2] o qual elas não se reconhecem.[3] Assim, a peça central do processo era um parecer psicológico que atestava esse sofrimento, justificando que o Estado brasileiro reiterava tal violência ao não retificar o nome da pessoa autora do processo.

At a sunny park, a large banner is held that says "G-8 Generalizando" and "sex and gender rights." A rainbow pride flag stands on a pole next to the banner.

G8-Generalizando na Parada Livre de Porto Alegre (2017). Foto do autor.

Antes de explicar melhor como é elaborado este parecer psicológico, devo esclarecer que uma “peça judicial” é um documento escrito por advogados, cujo protocolo ao processo judicial permite que o caso avance—ou seja, cada peça judicial inquere as outras partes envolvidas (neste caso, o juiz ou o Ministério Público). As principais peças analisadas foram a petição inicial (que inicia o processo judicial e estabelece os seus objetivos), o recurso (que permite recorrer da sentença final) e o agravo (que permite recorrer das decisões interlocutórias do juiz, durante o processo). Em diálogo direto com as peças judiciais, os pareces psicológicos foram elaborados pelos psicólogos do G8-G para produzir provas materiais da violência psicológica sofrida pelas pessoas assistidas quando eram chamadas pelo seu nome de registro. Ao contrário das peças judiciais, o parecer é uma prova, aceita pelas partes como uma representação material que justifica os pedidos apresentados na petição inicial. Ao não produzir peças ou relatórios de patologizantes, o G8-G inovou, trazendo uma nova interpretação da lei.

Para a segunda parte da resposta, volto novamente à Mol. Uma vez que os processos do G8-G corriam em segredo de justiça—por terem dados sensíveis de pessoas vulneráveis e que a descoberta da alteração do registro poderia causar mais situações de violência às pessoas assistidas—precisei criar uma estratégia narrativa que me permitisse narrar o que eu presenciava durante a minha etnografia com o G8-G. Em resumo, a minha etnografia consistiu na observação de reuniões semanais, bem como de atividades específicas (apresentações do grupo a outras entidades e participação em eventos LGBT) e de formações profissionais dos integrante sobre peças judiciais e pareceres psicológicos. Assim, me inspirei em Mol (2002) e propus a peciagrafia, uma palavra que inventei, como um método potente para compreender as relações justapostas entre as peças jurídicas e processo de discussão e formulação do argumento ali colocados. A peciagrafia segue as peças judiciais, centrando-se especificamente nas modificações e reformulações que ocorrem ao longo do seu processo de (re)produção em diferentes processos jurídicos.

Para tanto, queria partir de uma citação de Virginia Woolf em Orlando.

Mas o que pode o biografo fazer quando o tema de sua biografia o pôs na situação em que Orlando nos pôs? A vida, concordam todos cuja opinião vale a pena consultar, é o único tema apropriado para o romancista ou o biógrafo; a vida, decidiram as mesmas autoridades, não tem nada a ver com ficar sentado sem se mexer numa cadeira, apenas pensando. O pensamento e a vida são como polos opostos. Portanto, como ficar sentada numa cadeira apenas pensando é precisamente o que Orlando está fazendo agora, não nos resta outro recurso senão o de recitar o calendário, desfiar as contas do rosário, assoar o nariz, atiçar o fogo, olhar pela janela, até que ela termine com isso. Orlando se mexia tão pouco que se podia ouvir um alfinete caindo. Quem dera, na verdade, que alfinete caísse! Já seria de alguma vida, por ínfima que fosse. […] Se ao menos os biografados, podemos nos queixar (por nossa paciência está se esgotando), tivessem mais consideração para com seus biógrafos! (Woolf 2015, 175-6)

A ironia trazida por Virginia Woolf ao falar sobre o trabalho do biógrafo quando tem de descrever momentos de ócio ou de momentos nos quais o pensamento é o principal protagonista, como a escrita de um livro, traduzia os meus próprios anseios ao pensar em trabalhar a relação entre práticas e peças judiciais. Afinal, quando estamos falando do ato de escrita desses documentos, parece uma tarefa impossível e enfadonha transformar o ato de sentar-se à frente do computador em uma descrição interessante. Contudo, o ambiente das reuniões semanais do G8-G quebrou com a minha expectativa ao trazer, dentro de sua pauta, a possibilidade de debate e troca de ideias acerca das peças jurídicas, assim como uma série de dúvidas, anseios e críticas sobre elas. Não apenas isso, como o grupo organizava formações regulares sobre os principais conhecimentos que precisavam ser ensinados para os integrantes mais novos. Nesses momentos de aprendizagem, era possível captar as estratégias jurídicas, os engendramentos entre leis e fatos, assim como se transformava as discussões em reunião em uma peça jurídica.

Assim, a praxiografia proposta por Mol (2002) tornava-se uma ferramenta interessante de captura desses modos de ordenamento e performatividade do mundo através das práticas e das peças jurídicas do grupo—principalmente após ser ensinado que uma das principais formas de aprender a produzir o direito é a utilização de modelos. Durante o meu período de participação ativa no grupo, muitas foram as ocasiões nas quais se referiam ao grupo de e-mails para especificar que o caso em que discussão já possuía um modelo que poderia ser usado como base para a produção da peça a ser anexada ao processo. Nesse fazer do direito, a prática estava relacionada a uma aprendizagem com um objeto que trazia em si a possibilidade de reprodução e adequação.

Nesse sentido, inspirado na praxiografia sugerida por Mol, propus como principal método empreendido na minha pesquisa a peciagrafia—ou descrição do processo de (re)produção de peças. O nome advém do verbete latino pecia, entendida como parte ou pedaço, e origem etimológica da palavra peça no português. Contudo, mais do que isso, pecia descreve um antigo método utilizado nas universidades europeias no século XII e XIII para a reprodução de textos. Como forma de prover o acesso de obras fundamentais aos estudantes, a técnica consistia na separação do manuscrito em seções, posteriormente copiadas e autentificadas por uma comissão de peritos. Os exemplares finais eram então circulados entre os estudantes. Esse método deu origem, posteriormente, às bibliotecas universitárias, sendo encorajado até a criação da primeira impressão.

Assim, enquanto forma de aprendizado, a produção e, posteriormente, reprodução dos modelos de peças foi uma das principais ferramentas utilizada dos integrantes do G8-G. Nesse sentido, a peciagrafia trata-se da descrição dessas práticas justapostas aos respectivos modelos jurídicos, trazendo a possibilidade de melhor entender como que a relação entre o processo de discussão e de (re)produção da peça jurídica é performada. Ao contrário do método original da pecia, a peciagrafia empreende em prestar atenção e descrever os momentos em que, na reprodução, problemas antigos e novos surgem e como se lidam com eles, podendo ter como efeito a modificação do próprio modelo.

Logo, enquanto a descrição da (re)produção de peças jurídicas a partir de modelos compartilhados dentro do G8-G, a peciagrafia trouxe a possibilidade de explicitar como a relação entre o processo de discussão e de (re)produção da peça jurídica era performada, focando nos momentos em que problemas antigos e novos surgiam e como eram resolvidos, tendo como um dos efeitos a modificação do próprio modelo. Ao focar na descrição dos processos de (re)produção das peças e em conjunto com uma etnografia de longa duração no G8-G, a peciagrafia potencializou a narrativa da memória ali subjacente e trouxe à tona as mudanças de posicionamento do grupo e a sua tradução para a gramática jurídica.

Assim, a partir da peciagrafia, pude descrever uma parte do campo de disputas políticas acerca do gênero e sexualidade no Brasil—ou quando o sexo se torna uma questão de Estado. Aqui, penso a partir da proposta de Judith Butler (2013): adentrar aos eventos críticos é entender esses momentos de esgarçamento do tecido de nossa rede epistemológica, em que “as categorias segundo as quais nossa vida social é ordenada produzem uma certa incoerência ou domínios inteiros de ininteligibilidade” (163-4). Ou seja, a peciagrafia desses processos jurídicos nos mostram um momento de possibilidade de modificação dos nossos domínios de inteligibilidade, não perdendo a sua complexidade, mas focando justamente em como pequenas mudanças produzem um efeito borboleta que, ao final, pode mudar nosso próprio entendimento sobre o sexo enquanto sociedade.

Notes

[1] Um termo êmico histórico no movimento LGBT no Brasil, na América Latina e em Portugal. Travesti refere-se a alguém designado homem ao nascer, mas que se identifica como mulher, e pode e não ter feito procedimentos estéticos e cirúrgicos. Ver Bento (2012).
[2] Uso “nome de registro” como o nome presente na certidão de nascimento, escolhido pelos guardiães legais na hora do registro em cartório. Ele se contrapões ao “nome social,” utilizado por travestis e pessoas trans na sua rede social e nas suas interações diárias. No Brasil, temos uma infinidade de documentos de identidade, que sempre fazem referência ao “nome de registro”—dificultando o uso de “nomes sociais” nesses documentos.
[3] A dicotomia entre “nome de registro” e “nome social” vem do uso muito restrito e burocrático do direito civil no Brasil. É quase impossível mudar o seu “nome de registro”—a única opção viável é argumentar que ele causa eventos violentos na vida da pessoa. Assim, o movimento travesti e trans investiu em alternativas legais, como a produção de identidades usando seus “nomes sociais.” Mas a questão permaneceu: ao lidar com espaços burocráticos e legais, essas identidades não foram totalmente reconhecidas, uma vez que o seu “nome de registro” ainda é referido e utilizado na maioria dos seus documentos legais.


Referências

Bento, Berenice. 2012. O Que é Transexualidade? São Paulo: Brasiliense – Coleção Primeiros Passos.

Butler, Judith. 2013. “O Que é a Crítica? Um Ensaio sobre a Virtude de Foucault.” Cadernos de Ética e Filosofia Política, São Paulo n. 22, pp. 159-179, ago.

Mol, Annemarie. 2008. “Política Ontológica: Algumas Idéias e Várias Perguntas.” In: Nunes, João Arriscado e Roque, Ricardo (org.) Objectos Impuros: Experiências em Estudos Sociais da Ciência. Porto: Edições Afrontamento. Tradução de Gonçalo Praça. pp. 63-77.

Woolf, Virginia. 2015. Orlando: Uma Biografia. 1ª Edição. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 286 p.

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