Como antropóloga e pesquisadora da área dos estudos sociais da ciência e da tecnologia, grande parte da minha carreira acadêmica tem sido dedicada, com orgulho, à pesquisa e denúncia de preconceitos, desigualdades e enviesamentos nas práticas científicas e médicas. Essa crítica, longe de querer minar a credibilidade científica, vem de um lugar de profundo respeito, confiança e, ouso dizer, grande otimismo em relação a que tipo de proposta temos para a ciência a longo prazo: um projeto em que o conhecimento seja abrangente e acessível e cuja autoridade não se baseie na ocultação de informações.
Entre as inúmeras questões importantes enfatizadas pela crise da COVID-19 estão as inegáveis disputas de credibilidade que o conhecimento científico vem enfrentando, o que pode ser ilustrado pelas amplas controvérsias sobre o uso de máscaras, a eficácia da quarentena e a segurança e os benefícios do uso de algumas drogas. Mas tais disputas não parecem ter relação com o surgimento dos espaços mais democráticos e cooperativos que temos tentado implementar. Em vez disso, elas fazem parte de um fenômeno multifacetado e cheio de camadas, profundamente relacionado ao surgimento de movimentos de extrema-direita em todo o mundo, à consolidação de estratégias que temos chamado de “fake news” e pós-verdade e, é claro, à base frágil sobre a qual a ciência construiu sua autoridade: a ocultação de controvérsias e o apagamento da agência humana das práticas científicas a que chamamos de caixas pretas (Epstein 1997, 29). Sendo assim, parte dessa crescente desconfiança parece relacionada a preocupações sinceras: muitas pessoas sentem que a ciência não é transparente em seus interesses e seus métodos são frequentemente percebidos como muito remotos, técnicos e abstratos (Crease 2019).
Nesse sentido, caixas pretas funcionam bem para garantir que as pessoas não tenham outra opção a não ser aceitar a palavra da ciência sobre as coisas—mas práticas e escolhas ruins podem envelhecer mal longe da exposição à luz. Esse foi exatamente o caso há três décadas, quando o AZT (zidovudina) foi apresentado pela primeira vez pelos laboratórios Burroughs Wellcome como uma droga promissora com potencial para pôr um fim à crise da AIDS. O AZT não foi projetado para combater a infecção pelo HIV; ele foi criado décadas antes disso para o tratamento do câncer, mas foi considerado “tóxico demais” para esse uso. O hype sobre o AZT começou assim que o laboratório mostrou os maravilhosos resultados que o composto teve no combate ao HIV in vitro, o primeiro passo de uma enorme lista de procedimentos projetados para testar a eficácia e a segurança de novos medicamentos. Sob imensa pressão do governo, médicos, pacientes e ativistas, o medicamento foi aprovado em tempo recorde pela Food and Drug Administration (agência reguladora dos EUA) tendo como base estudos que, em pouco tempo, se mostraram não apenas profundamente falhos, mas cujo duplo-cego foi desvendado por médicos e pacientes ainda nas primeiras semanas dos testes (Epstein 1997, 202).
Então, em 2020, quando ficou evidente que a nova doença causada por um coronavírus desconhecido se tornaria uma grande crise de saúde, comecei a observar as empresas farmacêuticas vasculhando suas prateleiras em busca de um medicamento “milagroso” para combatê-la e curá-la. Meu primeiro pensamento foi: isso é muito familiar. Como a cloroquina e seu derivado, a hidroxicloroquina, já haviam sido consideradas como possíveis tratamento para outros vírus da SARS (Vincent et al. 2005), eles rapidamente se tornaram candidatos ao tratamento da infecção por SARS-CoV-2. Em questão de semanas, dezenas de estudos foram iniciados—primeiro, na China, e, pouco tempo depois, no resto do mundo—e a cloroquina monopolizou o debate como uma possível salvação para a pandemia iminente, apesar da falta de evidências apontando nessa direção. Muitos cientistas, estudiosos e médicos começaram a pedir cautela e clareza sobre a hipótese, apontando que os resultados eram incipientes, e que eram apenas o começo de uma longa cadeia de etapas essenciais. Mas essa é uma discussão difícil de promover em um contexto de ansiedade social sem precedentes, especialmente quando consideramos que as ferramentas para entender melhor como realmente se produz ciência e uma compreensão mais ampla do que significa “boa ciência” foram historicamente negadas a maior parte das pessoas.
No meio de centenas de publicações revisadas por pares, dois estudos sobre a hidroxicloroquina tornaram-se particularmente proeminentes na tentativa de identificar o lugar que a droga ocuparia na história da COVID-19: “Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial” (Gautret et al. 2020) e “Hydroxychloroquine or chloroquine with or without a macrolide for treatment of COVID-19: a multinational registry analysis” (Mehra et al. 2020). Apesar de reivindicarem coisas muito diferentes, ambos os estudos receberam muita cobertura da mídia em todo o mundo, com o primeiro estudo sendo instantaneamente promovido por administrações negligentes, como as lideradas por Donald Trump nos EUA e Jair Bolsonaro no Brasil. O estudo de Gautret foi publicado em março de 2020 e parecia confirmar que o uso de hidroxicloroquina (em combinação com a azitromicina) poderia ajudar a controlar a carga viral de pessoas infectadas. No entanto, pouco tempo depois de lançado, o estudo foi fortemente criticado por sua metodologia, porque os sujeitos no grupo de controle e no grupo experimental precisam ser o mais parecidos possível em um estudo comparativo. Eles devem ter aproximadamente a mesma idade, ter homens e mulheres na mesma proporção, e as pessoas precisam estar no mesmo estágio da doença—cuidados que não foram seguidos no experimento. Essa falha flagrante no design do estudo, entre outras críticas, levou a Elsevier—a editora proeminente e de grande reputação que publicou a pesquisa—a afirmar que “foram levantadas preocupações sobre o conteúdo, a aprovação ética dos testes e o processo de avaliação a que este artigo foi submentido para ser publicado no International Journal of Antimicrobial Agents” (Joint 2020).
Poucos meses depois disso, em maio de 2020, o estudo de Mehra foi publicado, e ele parecia provar não apenas que a hidroxicloroquina não era eficaz no tratamento da COVID-19, mas que ela, na verdade, aumentava o risco de morte do paciente. Dessa vez, o estudo teve um impacto ainda maior, a ponto de a Organização Mundial da Saúde decidir recomendar a suspensão de todos os outros estudos com o medicamento. Mas não demorou muito para ficar claro que essa pesquisa também apresentava sérios problemas, dessa vez em relação à veracidade de seus dados primários. Após a publicação de um manifesto assinado por mais de 100 cientistas, o Lancet retratou o estudo com o apoio de 3 dos 4 autores da pesquisa: “O Lancet leva a sério a questão da integridade científica, e há muitas questões pendentes sobre a Surgisphere [a empresa que forneceu os dados do estudo] e os dados que foram supostamente incluídos neste estudo” (Lancet 2020).
Em meio a uma crise enorme de credibilidade e de uma crise global de saúde, dois importantes estudos revisados por pares que poderiam potencialmente alterar o curso da pandemia foram desacreditados por outros estudiosos semanas depois de terem sido publicados. Isso não é particularmente incomum; a retratação é uma prática bem conhecida em revistas científicas, mas é possível que esses episódios sejam usados para incitar ainda mais suspeita em relação à ciência. Afinal, ainda é verdade que ambos os estudos foram extremamente falhos: o primeiro foi mal elaborado e o segundo possuía dados muito questionáveis, além de outras preocupações éticas levantadas nos dois casos. No estudo de Gautret, por exemplo, existiam sérios indícios de que o estudo foi iniciado antes de receber a aprovação da Agência Nacional Francesa, que é obrigatória em estudos em que as pessoas recebem medicamentos inicialmente aprovados para outra doença. No estudo de Mehra, por outro lado, o principal problema foi um conflito de interesses. Não apenas um dos autores é o proprietário da Surgisphere, a empresa que forneceu o conjunto de dados principal a partir do qual as conclusões do estudo foram tiradas, mas a empresa também não forneceu explicações sobre como os dados do estudo foram coletados quando questionada por pesquisadores que mostraram preocupações com relação à homogeneidade incomum entre dados de diferentes países. Nesse caso, também houve a questão da inclusão de dados de hospitais que não possuíam registros digitais de seus pacientes, o que levantou suspeitas ainda maiores sobre a autenticidade do conjunto de dados.
Concluindo, fica claro que, idealmente, esses estudos nunca deveriam ter sido publicados. Mas estes são tempos excepcionais. Governos e pessoas de todo o mundo, a Organização Mundial da Saúde, as grandes empresas farmacêuticas e os principais conglomerados empresariais do mundo demandam da ciência uma solução para a pandemia. As pessoas estão assustadas, cansadas, isoladas e querem um rápido retorno à normalidade. Então, sim, esses estudos foram publicados. E já que isso aconteceu, é bom que essas discussões estejam ocorrendo em plena luz do dia.
Então, mais uma vez, penso sobre a epidemia da AIDS e sobre como parte da comunidade científica se contentou com resultados mal coletados. Penso na rapidez com que o governo dos EUA apostou em uma droga com danos colaterais potencialmente mortais. O AZT dominou completamente o mercado e as pesquisas em torno do tratamento do HIV por uma década inteira, mas isso não teve nada a ver com ele ser indiscutivelmente benéfico—isso aconteceu porque tornou-se extremamente difícil desviar a atenção para quaisquer soluções alternativas. Muitos pacientes, sentindo-se isolados e negligenciados, arriscaram a vida testando o AZT e outras drogas (investigadas fora do eixo euroamericano) sem qualquer acompanhamento médico, uma vez que lhes foi negada a participação em tais espaços de produção de conhecimento. No final, o grande divisor de águas para os pacientes positivos acabou sendo a Terapia Antirretroviral Altamente Ativa, tratamento que incluía o AZT e compostos de outras classes, e que mudou completamente a epidemia de AIDS e a taxa de sobrevivência de pessoas vivendo com HIV. Essa terapia medicamentosa combinada só existe devido aos esforços de vários grupos independentes e pacientes que continuaram exigindo melhores medicamentos, que buscaram melhores alternativas farmacológicas por conta própria e que continuaram pressionando por práticas de pesquisa menos inertes.
Mas é aí que os paralelos entre os dois medicamentos terminam: a Organização Mundial da Saúde suspendeu oficialmente todos os ensaios com cloroquina e seus derivados com base em estudos de todo o mundo que ofereceram provas definitivas de sua ineficácia no combate à COVID-19. Ao contrário do AZT, a cloroquina não será lembrada como mais do que uma droga de transição, como tantas outras testadas nos estágios iniciais de uma epidemia. Então, até certo ponto, vejo a disputa pela cloroquina como um sinal de que as caixas pretas podem estar se tornando mais translúcidas. Afinal, é algo positivo o fato de que pudemos acompanhar essa controvérsia se desenrolar em tempo real. É bom que estudiosos e pesquisadores estejam monitorando seus pares e aplicando os mais altos padrões de qualidade e ética aos trabalhos uns dos outros, mas também é extremamente importante lembrar que, ao contrário do que nossos instintos talvez indiquem, só é possível fazer boa ciência graças a fracassos e erros. Ao mesmo tempo, não podemos subestimar o impacto que estudos e experimentações perniciosos tiveram na percepção geral das práticas científicas: existem muitos Tuskegees, Dalkon Shields, e outros casos desprezíveis de negligência e abuso na conta da ciência, especialmente contra pessoas negras, povos indígenas e mulheres.
Ainda existem muitos desafios éticos à nossa frente quando falamos dessa pandemia, não apenas porque a cloroquina ainda está sendo amplamente utilizada no Brasil contra todas as recomendações, mas também porque o teste e a distribuição de vacinas estão se tornando uma realidade bem depressa, e precisamos estar alertas para acompanhar como essas práticas serão conduzidas. Além disso, está claro que atores de esferas diferentes—como políticos, formuladores de políticas e grandes empresas—continuarão a desempenhar um papel central na maneira como muitas dessas implementações serão executadas, acrescentando muitas camadas de complexidade a essas decisões éticas.
Por fim, não podemos esquecer que epidemias trazem algumas escolhas impossíveis para pesquisadores e médicos: devemos ser puristas e inflexíveis com os padrões científicos, arriscando a perda de muitas vidas ao restringir o acesso a terapias potencialmente benéficas? Devemos arriscar a saúde das pessoas administrando-lhes drogas cujos efeitos colaterais são inteiramente desconhecidos? Devemos delegar a escolha aos pacientes, sabendo que muitos deles não possuem as ferramentas apropriadas para avaliar os riscos que estão assumindo? Quarenta anos depois da AIDS, ainda não temos as respostas para essas questões, e é provável que nunca as tenhamos. No entanto, está ao nosso alcance promover transparência, acessibilidade ao conhecimento, produção colaborativa e melhor educação e letramento científico. Se queremos práticas científicas menos excludentes e verdadeiramente democráticas, é melhor começarmos a transformar nossas limitações em virtudes e a desvincular nossa credibilidade de uma suposta infalibilidade enquanto ainda fazemos parte do debate coletivo. Se não fizermos isso, outros atores preencherão essa lacuna com respostas muito mais palatáveis e seremos deixados falando sozinhos.
Referências
Crease, R. P. 2019. The Workshop and the World: What Ten Thinkers Can Teach Us about Science and Authority. WW Norton & Company.
Epstein, S. 1996. Impure Science: AIDS, Activism, and the Politics of Knowledge. University of California Press.
Gautret, P., J. C. Lagier, P. Parola, L. Meddeb, M. Mailhe, B. Doudier, … and S. Honoré. 2020. “Hydroxychloroquine and Azithromycin as a Treatment of COVID-19: Results of an Open-label Non-randomized Clinical Trial.” International Journal of Antimicrobial Agents, 105949.
Joint I. S. A. C. Elsevier statement on Gautret et al. paper [PMID 32205204].
Lancet. 2020. “Retraction: Study on Chloroquine and Hydroxychloroquine in COVID-19 Patients.” ScienceDaily. Retrieved June 12, 2020 from www.sciencedaily.com/releases/2020/05/200522113712.htm.
Mehra, M. R., S. S. Desai, F. Ruschitzka, and A. N. Patel. 2020. “Hydroxychloroquine or Chloroquine with or without a Macrolide for Treatment of COVID-19: A Multinational Registry Analysis.” Lancet (published online May 22). 10.1016/S0140-6736(20)31180-6.
Vincent, M. J., E. Bergeron, S. Benjannet, B. R. Erickson, P. E. Rollin, T. G. Ksiazek, N. G. Seidah, and S. T. Nichol. 2005. “Chloroquine is a Potent Inhibitor of SARS Coronavirus Infection and Spread.” Virology Journal (2)69. https://doi.org/10.1186/1743-422X-2-69.