Luiza é uma pediatra e pesquisadora especializada em doenças infecciosas que trabalha em um hospital universitário em Recife, Brasil. Sua rotina diária envolve o tratamento de crianças com síndromes congênitas, que podem levar a várias condições clínicas, incluindo microcefalia. No entanto, em outubro de 2015, uma situação sem precedentes se desenrolou sob seus olhos. Como ela descreveu durante uma entrevista comigo, “naquele ano, um novo mundo entrou no meu mundo.” Ela estava se referindo ao aumento dos casos de microcefalia que intrigou médicos brasileiros e autoridades de saúde naquele ano. Em Recife, onde o número médio de casos de microcefalia historicamente ficava em torno de nove casos por ano, foram registrados doze casos em apenas uma maternidade em um mês!
Para complicar as coisas, ninguém sabia a causa daquela microcefalia. Normalmente, a microcefalia congênita está relacionada ao que é conhecido na medicina como STORCHs (sífilis, toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e herpes), mas, como Luiza compartilhou comigo, todos os exames de sangue deram negativo para essas infecções. Quase dez anos após o misterioso surto de microcefalia, a comunidade científica chegou ao consenso de que o fenômeno estava ligado ao Zika Vírus, um patógeno que havia sido identificado no país alguns meses antes naquele mesmo ano (Diniz, 2016). A microcefalia passou a ser entendida como um sintoma de uma síndrome muito maior: a Síndrome Congênita do Zika (SCZ). Embora geralmente transmitido pela picada do mosquito Aedes aegypti e durante a gravidez, o Zika também pode se espalhar por fluidos corporais, como sêmen.
Na época, contudo, nada disso era conhecido e o fenômeno gerou grande medo. O número de crianças nascendo com a misteriosa microcefalia continuava a crescer, e Luiza lembra como seu consultório ficou cheio de bebês com microcefalia acompanhados de duas preocupadas e angustiadas mães. As famílias tinham muitas perguntas que nem Luiza nem ninguém poderia responder: “Meus colegas e eu nos sentimos muito pressionados pelo que estava acontecendo e começamos a investigar.” Como ela, muitas outras pessoas também começaram a fazer pesquisas. A situação era assustadora e se transformou em uma emergência de saúde pública, que mais tarde foi declarada pelo Ministério da Saúde do Brasil e pela Organização Mundial da Saúde. Isso, somado à onda de financiamento direcionada à pesquisa relacionada ao Zika, levou ao que um dos nossos interlocutores chamou de “corrida científica.” Como Recife foi o primeiro epicentro da epidemia, a cidade tornou-se, também, o epicentro da produção científica. Apenas em 2018, havia mais de cem projetos relacionados ao Zika acontecendo na cidade (Simas, 2020). Essa corrida científica é a principal preocupação do projeto de pesquisa no qual participo na Universidade de Brasília, chamado “Uma antropologia da Ciência do Zika Vírus” (Fleischer, 2022; Valle, 2023; Coutinho, 2023; Petruceli, 2022). Neste projeto, temos uma equipe de graduandos e pós-graduandos e nossa investigação se concentra em Recife, onde realizamos 93 entrevistas estruturadas com cientistas de diferentes especialidades que estavam envolvidos no estudo dessa intensa epidemia. Este projeto tem vários objetivos, tais como:
- Mapear quais áreas de conhecimento e centros de pesquisa estavam envolvidos na resposta à epidemia em Recife
- Compreender as motivações para o desenho dos estudos
- Compreender como eles foram estruturados, as equipes montadas, parcerias estabelecidas, financiamento e aprovações éticas buscadas
- Compreender como os participantes foram recrutados e monitorados, e como os dados foram construídos ou coletados em termos metodológicos, técnicos e éticos
Hoje, porém, gostaria de compartilhar algumas das experiências de nossos interlocutores sobre como suas experiências locais com a epidemia de Zika impactaram suas práticas científica de forma mais ampla. Desejo pensar em como essa experiência lhes deixou mais reflexivas sobre a produção de conhecimento e sobre a construção da ciência. Para muitos dos médicos e pesquisadores que conhecemos, a epidemia de Zika implicou “um tipo diferente de pesquisa.” Realizar pesquisas durante uma epidemia apresentava desafios únicos, incluindo alta demanda por respostas e soluções, novas oportunidades de financiamento e a formação de novas redes. Entre essas características, existem duas principais particularidades que foram constantemente enfatizadas pelos pesquisadores que eu e minha equipe conhecemos: sua novidade e sua urgência. Vamos começar pela novidade.
À medida que a ligação entre Zika e o surto de microcefalia se fortalecia, os cientistas enfrentaram outro problema. Eles foram percebendo que também estavam lidando com um novo diagnóstico, ou uma nova “entidade nosológica,” como eles chamavam. Essa nova entidade nosológica se estabilizou como a SCZ, mas ninguém sabia nada sobre ela. O fenômeno era assustador e completamente desconhecido. Como Luiza explicou, “estávamos completamente desorientados. Não sabíamos como tratar, o que esperar, o que dizer às famílias. Não havia diretrizes para isso. Nenhum padrão—ouro, nada.”
Como Naomi, uma gastroenterologista, explicou, a novidade trouxe também incerteza. Naomi e sua equipe tiveram que repensar e replanejar constantemente suas abordagens. Por exemplo, ela compartilhou um caso prático relacionado à fórmula de leite para crianças diagnosticadas com SCZ. Inicialmente, ela e sua equipe se basearam na literatura relacionada à paralisia cerebral. No entanto, observaram que as crianças com Zika estavam ganhando peso rapidamente. “Percebemos que tínhamos cometido um erro. Tivemos que refazer tudo, recalcular tudo,” ela contou. Também havia o medo do erro: “Estamos fazendo isso certo? É isso mesmo?” ela ponderou. Esse encontro intenso com o desconhecido exigiu uma reavaliação de metodologias e despertou novos diálogos com a literatura. Essas incertezas e dúvidas fizeram Naomi repensar, refletir e refazer.
Como os estudiosos de STS demonstraram, isso é inerente ao processo científico. A produção de conhecimento científico lida constantemente com a incerteza, embora os próprios cientistas nem sempre enfatizem essa natureza contingente. Durante a epidemia de Zika, contudo, essa incerteza se tornou especialmente evidente, mesmo dentro de campos tradicionalmente mais duros, como a epidemiologia. Isso teve um impacto em como “nossos” cientistas estavam vendo e percebendo a construção do conhecimento; estimulou a reflexividade em relação às suas próprias práticas—e certezas.
Mas além da novidade, que exigia uma certa reflexividade impulsionada pelo encontro com o novo e o desconhecido, a urgência também trouxe alguns momentos de reflexão à tona. Como Sarah, uma epidemiologista, nos disse firmemente: “Olha, este projeto tinha urgência. Havia urgência em tentar explicar, em tentar entender o que estava acontecendo. Era algo localizado aqui, em uma população de baixa renda, em uma população muito vulnerável e a gente não conseguia explicar.” Ao “viver uma epidemia em tempo real,” Sarah começou a repensar seu papel e sua responsabilidade como cientista. A urgência despertou maior comprometimento e reflexão em Sarah, como ela compartilhou conosco.
Essa urgência também desempenhou um papel significativo na justificação da pesquisa. A “necessidade de resposta” e as vidas das crianças nascidas com a nova síndrome foram fortes motivações para conduzir pesquisas naquele momento. Como mencionado, recursos substanciais foram alocados para isso, e os Comitês de Ética em Pesquisa expandiram suas equipes para avaliar eficientemente os numerosos projetos sendo submetidos. A urgência tornou-se um fator crucial para promover a proliferação de pesquisas em diversas áreas do conhecimento. Dado que a SCZ se apresentava com diversas manifestações clínicas, especialistas de várias áreas, juntamente com numerosos estudantes—incluindo eu e minha equipe—começaram a procurar ativamente crianças diagnosticadas com SCZ. Esse senso de urgência compeliu muitos cientistas a concentrar seus esforços na investigação do mesmo fenômeno. Consequentemente, esse “tráfego científico” expôs vários pesquisadores não a “padrões ouro,” mas a “padrões-outros,” envolvendo diferentes cientistas, especialidades, metodologias e objetivos. Uma otorrinolaringologista que conhecemos achou sua experiência de pesquisa sobre Zika radicalmente diferente de qualquer outra porque justamente porque nunca antes ela havia precisado falar, discutir e debater tanto fora de sua própria especialidade.
Para ela, esse encontro entre campos e o aumento da exposição a novas práticas provocaram uma mudança cognitiva—uma elucidação por meio da diferença e alteridade. Ao ver outros tipos de formas de produzir conhecimento e conduzir pesquisas, ela repensou as suas próprias. Como ela explicou, a epidemia de Zika articulou novas redes, reunindo em diálogo especialistas que nunca haviam cruzado caminhos, em nome da “urgência.” Ela diz que esse encontro foi um “grande ganho,” que houve aprendizado constante e reflexão por meio de trocas e conversas com outras especialidades. No entanto, esses encontros interdisciplinares nem sempre foram harmoniosos. Dentro dessa corrida científica, muitos dos encontros entre cientistas foram colisões—verdadeiras competições por “dados científicos” que também lhes obrigaram a se avaliar mutuamente, seja pela inspiração ou pelo confronto.
Mas eu também gostaria de chamar a atenção para o fato de que essa exposição a outras práticas científicas não aconteceu apenas através de cientistas se esbarrando durante momentos de urgência. Essas colisões e competições envolveram necessariamente os corpos dos participantes da pesquisa. A ciência conduzida durante crises de saúde, como Zika e COVID, compartilham isso em comum: elas envolvem aspectos clínicos, pesquisa com e em seres humanos, com, sujeitos que “falam de volta” (Epstein, 1996), que respondem, questionam, sentem dor e desconforto, e têm expectativas e frustrações.
Durante esses surtos, os cientistas muitas vezes se apressam para recrutar participantes da pesquisa. Para a síndrome do Zika, esses participantes eram frequentemente crianças diagnosticadas com SCZ experimentando exaustão e dor. Essas crianças, historicamente desassistidas pela saúde, de repente se viram em alta demanda para a pesquisa. Mas, como eu mencionei, não foi apenas um tipo de especialista que as procurou—foi uma gama inteira. O resultado foi um influxo massivo de pesquisa, incluindo extensas coletas de sangue, ressonâncias magnéticas, jejuns desconfortáveis e raios-X nessas crianças. Todos esses testes, feitos em grande quantidade, destacaram o impacto da interseção entre ciência e sujeitos de pesquisa. Suas mães, testemunhando todo esse processo, desempenharam papéis cruciais como vocalizadoras e avaliadoras das várias práticas científicas que afetavam seus filhos. Elas desafiaram os cientistas e, em muitas instâncias, os responsabilizaram (“held them accountable”). Essa experiência fez com que alguns dos pesquisadores que conhecemos reavaliassem suas próprias práticas, pesquisas e metodologias. Então, além de reavaliar suas práticas ao se deparar com outros tipos de pesquisa, alguns de nossos interlocutores também passaram por uma reavaliação provocada pelas percepções das famílias diretamente afetadas pela epidemia.
Esse intenso questionamento dos sujeitos de pesquisa foi um motivador fundamental para a reflexão para alguns desses pesquisadores. Por exemplo, uma fisioterapeuta declarou que um dos maiores legados que ela vê na epidemia de Zika é precisamente um certo cuidado com o participante da pesquisa—um reconhecimento da importância de ouvi-los, de se afastar da “evidência de cima para baixo,” de valorizar não apenas números, mas também o contato, o toque e o relacionamento. Para essa pesquisadora, ser cientista durante a epidemia de Zika a tornou muito mais reflexiva sobre os resultados da ciência e sobre seus retornos para a população. Ao longo de sua pesquisa de mestrado, essa pesquisadora enfrentou muitas recusas das mães de crianças com Zika. E ela ouviu dessas mães muitas justificativas para essas recusas, muitas delas ferozmente críticas sobre como a ciência estava se intersectando com suas vidas e como a ciência estava sendo conduzida. As impressões e críticas tecidas por essas mães sobre a conduta da ciência do Zika refletiram em como essa pesquisadora conduzia suas próprias práticas. Elas forneceram um novo ângulo para seus empreendimentos científicos.
Neste texto, procurei ilustrar como o surgimento de novidade, circunstâncias sem precedentes e a necessidade urgente de respostas—características típicas de epidemias e pandemias – localmente promoveram encontros entre uma ampla variedade de indivíduos. Esses encontros e associações reuniram múltiplas, e também conflitantes, construções sobre quais são os objetivos e consequências da ciência, bem como quais elementos compõem uma “boa ciência.” Olhar etnograficamente para as percepções desses cientistas—elaboradas entre eles mesmos, com as mães, com as crianças—pode nos ajudar a pensar sobre o que poderia ter sido feito melhor e considerar empreendimentos científicos de maneiras mais amplas e reflexivas, especialmente em “tempos de novidade e urgência.”
Referências
Coutinho, Laura Teixeira de Queiroz. A CIÊNCIA DO (IN)VISÍVEL: Analisando a atuação estadual referente à epidemia de Zika Vírus em Recife, PE. Monografia [Bacharelado em Antropologia]. Orientadora: Soraya Fleischer. Brasília: UnB, 2023.
Diniz, Debora. Zika: Do sertão nordestino à ameaça global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
Epstein, Steven. “The Rise of ‘Recruitmentology’: Clinical Research, Racial Knowledge, and the Politics of Inclusion and Difference.” Social Studies of Science, v. 38, n. 5, pp. 739-770, 2008.
Fleischer, Soraya. “Alfineteira humana”? As crianças na ciência do vírus Zika produzida em Recife/PE. Sociedade e Cultura, v. 26, 2023.
Petruceli, Mariana Esteves. As múltiplas responsabilidades de uma equipe de cientistas do Zika: Um estudo antropológico sobre a pesquisa em saúde em Recife/PE. Monografia [Bacharelado em Antropologia]. Orientadora: Soraya Fleischer. Brasília: UnB, 2023.
Simas, Aissa. Ciência, saúde e cuidado: Um estudo antropológico sobre a pesquisa clínica no contexto da epidemia do Zika (Recife/PE. Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade de Brasília, 2020.
Valle, Isadora. “FOME DE PESQUISADOR”: O ARTIGO CIENTÍFICO COMO SISTEMA DE VERDADE SOBRE A EPIDEMIA DE VÍRUS ZIKA EM RECIFE/PE. Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade de Brasília, Brasília, 2023.