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Codificando a sífilis: sobre a realidade dos dados

(Nota do editor: Este post no blogue faz parte do Thematic Series Data Swarms Revisited)

A imagem mostra as bactérias da sífilis sob o microscópio

Treponema pallidum sob microscópio usando uma coloração de prata Steiner modificada. Obtido na Biblioteca de Imagens de Saúde Pública do Centro de Controle e Prevenção de Doenças. Crédito da imagem: CDC / Dr. Edwin P. Ewing, Jr., 1986.

A sífilis, uma infecção causada pela bactéria treponema pallidum, é uma importante doença. Começa como uma lesão na pele e se desenvolve até deformar os ossos, comprometer o sistema nervoso central e, em última instância, causar a morte. Durante a gravidez a doença também pode ser transmitida de mãe para filho.

A sífilis acompanha nossa espécie desde ao menos a renascença e gerou várias inovações na ciência moderna ao longo de sua história. Ajudou a dar início à serologia por meio da Reação de Wasserman (Fleck, 2010), o primeiro teste de detecção, e foi crucial para a consolidação de perspectivas somatológicas de doenças mentais na psiquiatria (Carrara and Carvalho 2010). Devido à transmissão sexual da doença, nos séculos dezoito e dezenove a sífilis encarnou o mal venéreo por excelência em regimes sexuais restritivos (Fleck 2010; Quetel 1986). Desde essa época, a sífilis ajuda a estabelecer as bases para os códigos de conduta social e até mesmo para as ideias de “eu” em sociedades ocidentais, como por exemplo na criminalização da prostituição (Carrara 1996; Bastos 2007) e na conformação de teorias de contágio e suas relações de sujeito-corpo (Echeverría 2010).

O advento e a distribuição global da penicilina após a década de 1940, ainda o principal tratamento para sífilis, controlou o aumento da doença e preveniu suas manifestações mais severas. No entanto, atualmente a sífilis está reemergindo. Em 2016 a OMS reconheceu, na sexagésima nona Assembleia Mundial da Saúde, que a penicilina estava em situação de desabastecimento no mercado global da saúde e isso causava o avanço da doença em diversos países (Brasil 2016). Isso não somente em países de capitalismo periférico. De acordo com o relatório de 2019 do Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças, entre 2010 e 2018 houve um aumento de 70% nas notificações da sífilis na Europa (ECDC 2019).

Nesse texto, eu considero a realidade epidemiológica da sífilis no Brasil – onde a doença é considerada uma epidemia desde 2016[1] – para desenvolver algumas reflexões no contexto da Série Temática sobre ‘Pós-humanismo’ e em relação à astuta expressão “data swarms”. Eu foco especificamente no processo de produção de dados pelo sistema de vigilância, seguindo propostas de Ian Hacking (1991) em analisar a estatísticas como um estilo de pensamento dotado de desenvolvimento histórico e efeitos no ordenamento da realidade. Inicio com alguns eventos históricos da quantificação epidemiológica da sífilis, dando especial atenção à criação da categoria de notificação “sífilis em gestantes”.

Eu argumento que a transformação da sífilis em dados epidemiológicos cria uma realidade que reclama uma verdade sobre a doença. Esse processo envolve a implicação mútua entre representações e intervenções e, como demonstro, essas duas dimensões das ciências modernas são ambas práticas. Objetivo refletir em questões como: O que significa a vida entre dados e informações? Quais são as condições de possibilidade e as consequências de tornar um fenômeno um conjunto de dados? Quais os efeitos desse processo para as formas com que a doença é entendida e performada?

Quantificação epidemiológica da sífilis no Sistema de Saúde Brasileiro

Nos anos 1980 no Brasil não havia dados estandardizados e contínuos disponíveis para medir a distribuição e características da sífilis. Enquanto alguns estados registravam somente as mortes, outros incluíam casos detectados, ou casos suspeitos eram contabilizados em adição àqueles confirmados. Havia também estudos ocasionais, que cobriam serviços de saúde, municípios, bairros, estados, regiões do país ou de estimativas nacionais.

Neste momento, era entendido que a sífilis congênita estava no caminho de sua erradicação, um projeto sobre o qual pairava “um ambiente de otimismo” (Lima 2002: 268). Este cenário era embasado nas taxas de mortalidade da sífilis, que decresceram 5 por cento, de 2.47 para 1.02 por um milhão de habitantes, entre 1980 e 1995.

Foi nesse contexto, em 1986, que a sífilis congênita foi instituída como doença de notificação no Brasil. Se tornou imperativo que os casos detectados pelos serviços de assistência fossem notificados às agências de vigilância por meio de formulários devidamente preenchidos. Esse foi um importante mecanismo para a consolidação da unidade do sistema de saúde brasileiro, que estava sendo reformulado na direção de um sistema universal e de financiamento estatal. Este foi formalmente constituído em 1988, em meio ao processo de redemocratização do país após vinte e cinco anos de ditatura civil-militar.

A notificação obrigatória era essencial para estabelecer um consenso acerca do que contabilizar nos casos de sífilis congênita e de como isso deve ser feito: o que é necessário registrar? Quais critérios são válidos para confirmação dos casos? Quando que a notificação precisa ser feita e qual seu fluxo institucional e burocrático?

No entanto, a instituição da notificação obrigatória não resultou imediatamente na produção de indicadores nacionais. Para isso foi necessário a criação do Sistema Nacional de Agravos de Notificação em 1993. É este ambiente informacional que reúne e opera a transformação dos casos notificados em coeficientes e taxas. Foi somente em 1998 que instrumentos foram desenvolvidos, fluxos de informação criados e um software desenvolvido, o que estandardizou o envio de formulários às agências de vigilância.

Em 2004 outro evento promoveu a visibilidade epidemiológica da sífilis. A Organização Pan Americana de Saúde lançou um programa de eliminação vertical da sífilis para a região da América Latina e Caribe. Esse programa teve um efeito importante ao dar lugar de destaque à doença nas políticas de saúde do Brasil. A eliminação de sua transmissão vertical foi incluída em 2004 como uma prioridade do Programa Nacional de DST-AIDS do Ministério da Saúde, a notificação dos dados de sífilis congênita começou a ser publicada em boletins epidemiológicos, a definição de caso para sífilis congênita foi reformulada e a categoria de notificação “sífilis em gestante” foi instituída. Essa categoria de notificação teve um importante papel na quantificação da sífilis.

Sífilis em gestante

Em 2005 os casos de mulheres grávidas com sífilis foram baixos (1.863 casos) quando comparados ao número estimado por um estudo de prevalência conduzido pelo Ministério da Saúde um ano antes (48.425 casos). A subnotificação era calculada pela seguinte operação: a diferença entre o número de casos notificados e estimados. É por essa razão que o crescimento de mais de 400 por cento nos casos reportados nos próximos cinco anos (2010 registrou 10.084 casos e uma taxa de 2.4 para cada mil nascidos vivos), não foi considerado suficiente para que a sífilis seja uma epidemia. O crescimento dos casos somente revelava uma realidade que estava subnotificada.

Em 2016 a taxa de sífilis em gestantes foi de 13.4 para cada mil nascidos vivos, também uma elevação de mais de 400 por cento. Nesse momento a sífilis já era considerada uma epidemia no Brasil e os números, portanto, reais. Isso implicou em uma mudança nos cálculos para identificar a subnotificação: agora esse fenômeno é determinado pela diferença entre as taxas de sífilis em gestante e sífilis congênita. O boletim epidemiológico da sífilis de 2016, por exemplo, afirmou que os estados brasileiros de Alagoas, Ceará, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe e Tocantins “apresentaram taxas para sífilis congênita maiores que sífilis em gestante, o que refere possíveis lacunas no sistema de vigilância epidemiológico” (Brasil 2016: 4).

A diferença entre as taxas de sífilis em gestante e sífilis congênita indicam subnotificação pois toda criança que nasce com sífilis adquire a doença da sua mãe. Assim, se há mais notificação para recém nascidos do que para mulheres grávidas, há subnotificação dessa última categoria. A comparação é possível porque o cálculo desses dois indicadores é formado pelo mesmo denominador: o número total de nascidos vivos no mesmo território e no mesmo ano, e ambos são multiplicados pelo mesmo fator, 1000.

Em 2018 o Ministério da Saúde percebe uma “melhora na notificação de sífilis em gestante” (Brasil 2018: 8), já que quatro estados registraram taxas para essa categoria maiores que aquelas de sífilis congênita. Assim apenas dois estados, Pernambuco e Rio Grande do Norte, ainda apresentavam a relação inversa. Nos anos seguintes a expansão de testes de detecção e da rede pré-natal, assim como a promoção de treinamento para profissionais de saúde sobre procedimentos de notificação, foram implementados para melhorar o registro dos casos. Assim, em 2019 foi relatado que “Nenhuma Unidade da Federação teve uma incidência de sífilis congênita mais alta que a de sífilis em gestante (Brasil, 2019: 9).

Sífilis como Data Swarm

O monitoramento da sífilis constitui uma questão de escala. Tornou-se possível determinar sua distribuição e características em diferentes recortes temporais e espaciais: entre cidades e estados, no território nacional para diferentes períodos históricos a também em escala internacional. Esse é um modo de afirmar uma verdade sobre a doença.

A categoria de notificação “sífilis em gestantes” teve um importante efeito na consolidação da sífilis como uma realidade epidemiológica. Ela estabeleceu um método de verificação autorreferente: a identificação da subnotificação pela diferença entre suas taxas e aquelas de sífilis congênita. O parâmetro para esse cálculo não é mais externo ao processo de notificação, como era o caso do estudo de prevalência.

Mais do que uma técnica de detecção, essa operação estabelece critérios de compreensão da doença que a tornam visível, quantificável e também sujeita à intervenção. Por exemplo, medidas de aprimoramento do sistema de vigilância foram tomadas quando as taxas de sífilis em gestantes foram mais baixas do que aquelas de sífilis congênita.

Traduzir a sífilis em um conjunto de dados não é somente uma forma de representar, mas também de intervir, já que o dado é a produção de uma realidade para a interferência: representação e intervenção estão em relação de mútua implicação: Informação e controle operam uma medicina que transforma o corpo infectado em um código – um indicador de saúde – que distribui a vida em números. Seguindo Deleuze, essa é uma medicina

“sem médico nem doente”, que resgata doentes potenciais e sujeitos à risco, que de modo algum demonstra um progresso em direção à individuação, como se diz, mas substitui o corpo individual ou numérico pela cifra de uma matéria “dividual” a ser controlada. (Deleuze 1992: 7)

Estamos acostumados a pensar que somente intervenções são práticas concretas. Processos de quantificação nos mostram que representações são práticas também, o que nos oferece um modo de pensar sobre suas políticas. Essas visibilidades epidemiológicas emergem por meio de protocolos, “orientações e padrões tecnocientíficos que governam relações entre redes” (Galloway, Thacker 2007: 28). Formulários de notificação, definições de caso, testes de detecção são protocolos que materializam decisões acerca de como traduzir uma vida biológica – uma bactéria que infecta um corpo – em um conjunto de dados: uma realidade suscetível à interferência. São biopolíticas condensadas.

Agradecimentos

Sou muito grato às contribuições de Christoph Lange and Marcello Múscari. Muito obrigado também à Serena Stein pela assistência editorial.

Leia mais sobre a série Data Swarms:

Data Swarms Revisited – New Modes of Being by Christoph Lange

Human as the Ultimate Authority in Control by Anna Lukina

Angelology and Technoscience by Massimiliano Simons

Multiple Modes of Being Human by Johannes Schick

On Drones and Ectoplasms: Breath of Gaia by Angeliki Malakasioti

Fetishes or Cyborgs? Religion as technology in the Afro-Atlantic space by Giovanna Capponi


Notas

[1] Ver https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,ministro-da-saude-admite-que-brasil-vive-uma-epidemia-de-sifilis,10000083382 [último acesso em 07/06/2021].

Referências

Brasil 2016. Ministério da Saúde. SÍFILIS. Boletim epidemiológico, Brasília.Brasil 2019. Ministério da Saúde. SÍFILIS. Boletim epidemiológico, Brasília.Carrara, Sérgio; Carvalho, Marcos 2010. A sífilis e o aggiornamento do organicismo na psiquiatria brasileira: notas a uma lição d doutor Ulysses Vianna. História, Ciência. Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 17.Deleuze, Gilles 1992. “Postscript on the Societies of Control.” October, vol. 59, 3–7.Echeverria, Virginia 2010. “Girolamo Fracastoro and the Invention of Syphilis.” História, Ciência, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v.17, n.4, 877–884.ECDC – European Centre for Disease Prevention and Control 2019. Syphilis and Congenital Syphilis in Europe – A Review of Epidemiological Trends (2007–2018) and Options for Response. Stockholm: ECDC.Fleck, Ludwik 2010. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Tradução, Georg Otte, Mariana Oliveira. Belo Horizonte: Fabrefactum.Galloway, Alexander R.; Thacker 2007. The Exploit: A Theory of Networks. Minneapolis: University of Minnesota Press.Hacking, Ian 1991. “How should we do the history of statistic?” In: Burchel, G.; Gordon, C.; Miller, P. (eds.), The Foucault Effect: Studies in Governmentality. Chicago: The University of Chicago.Lima, Bruno Gil 2002. Mortalidade por sífilis nas regiões brasileiras, 1980-1995. Jornal Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial, v.38, n.4, 267–271.Quétel, C 1986. Le mal de Naples: histoire de la syphilis. Paris: Seghers.

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