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O que é uma previsão?: A evolução das previsões sazonais da Funceme no Ceará, Brasil

Todo mês de janeiro, funcionários do governo, moradores urbanos e famílias rurais em todo o estado do Ceará, Nordeste do Brasil aguardam ansiosamente a previsão da Funceme para a estação chuvosa. No entanto, em todo o estado, muitos também proclamam que as previsões da Funceme estão “erradas”, que as previsões não funcionam.

Dona Maria, da zona rural do município de Piquet Carneiro, explicou assim: “O problema da Funceme é o seguinte às vezes ele não funciona. Aqui, se eu tenho uma, como é que diz uma previsão da Funceme? Ela pode funcionar lá em outro município. Aqui não funciona. Ela prevê chuva, por exemplo. Mas aí chove, lá em Juazeiro do Norte. Não chove aqui em Piquet Carneiro. Chove lá em Barbalha e Várzea Alegre. E aqui nem pinga, né? Então é por isso que eu não dou muita importância, entendeu?” (Dona Maria, comunicação pessoal, 07 de março de 2022).

Mas o que significa que uma previsão está errada?

Apontando um padrão mais geral, as previsões da Funceme consistem em uma distribuição de probabilidades para níveis de chuva abaixo, em torno e acima da média para uma região geográfica grande. Como uma previsão é uma distribuição de probabilidades, tecnicamente, uma previsão não pode estar “errada”, mas sua performance pode ser avaliada em um conjunto de anos. Os modelos podem indicar que há uma maior chance de chuva acima da média, mas níveis de chuva mais baixos ainda estão dentro das possibilidades. Ao mesmo tempo, as previsões não são feitas em nível domiciliar ou comunitário, mas sim em nível regional, onde uma região pode ser um estado ou uma região geográfica maior. Entretanto, para famílias agrícolas no sertão, uma previsão está errada quando chove menos (ou mais) do que  foi “prometido” pela previsão, a maior probabilidade sendo entendida como uma previsão determinística. Por isso, para Dona Maria, as previsões da Funceme funcionam em algumas áreas, mas não em outras.

Nesta publicação, exploro a evolução e importância das previsões sazonais da Funceme no Ceará, onde a seca é integral na memória socioecológica coletiva (Alburque Jr. 1994, 2004; Seigerman et al. 2021). A maior parte do Ceará faz parte do semiárido brasileiro, caracterizado por distintas estações chuvosas e secas, baixos níveis pluviométricos e altas taxas de evapotranspiração (de Souza Filho 2018). As secas de 1877-1879, 1915, 1931, 1973, 1983, 1993 e 1998 evocam memórias de sofrimento desigual no sertão cearense, bem como a implementação de soluções de infraestrutura em larga escala em resposta à seca. A seca mais recente (2012 a 2018) é considerada a pior seca da história do Ceará (Marengo, Torres, Alves 2017).[1] Embora a mortalidade e a migração devido à seca tenham diminuído drasticamente nas últimas décadas, em parte devido aos programas de transferência de dinheiro condicional do governo (Nelson e Finan 2009), “crises de ansiedade coletiva em relação à estação de chuvas” ocorrem frequentemente e são frequentemente provocadas pela comunicação de informações climáticas (Taddei 2008, 79).[2]

O imaginário da Funceme

Em 1987, o Ceará reestruturou a Secretaria de Recursos Hídricos (SRH), e a Funceme passou da Fundação de Meteorologia e Chuva Artificial do Ceará para o Fundação de Meteorologia e Recursos Hídricos.  Esta mudança de nome, quinze anos após a fundação da Funceme, significou uma transição da Funceme como uma instituição focada na produção experimental de chuva artificial para uma instituição cujo foco era “água no sentido geral” (F. L. Viana, comunicação pessoal, 19 de agosto de 2022). Ela evoluiu como uma instituição inovadora que avança na modelagem de previsões, estudos ambientais básicos e pesquisas sobre a dinâmica sócio hidrológica. Estes avanços não são lineares, mas foram alcançados através dos esforços dos mais recentes presidentes da Funceme, que também foram encarregados de justificar o papel da Funceme como instituto de pesquisa depois que o presidente de 1995 a 2001 quase dissolveu a Funceme por tentar tratar o instituto de pesquisa como uma empresa (E. S. P. R. Martins, comunicação pessoal, 25 de outubro de 2022). Hoje, instituições governamentais e não-governamentais do nível regional ao internacional aplaudem a Funceme. No entanto, o caráter inovador da Funceme é muitas vezes ofuscado na zona rural do Ceará pela preocupação com as previsões da quadra chuvosa.[3]

Desde os anos 1970, hidrologistas fizeram importantes avanços na compreensão dos sistemas que moldam a estação chuvosa no Nordeste do Brasil, incluindo a Zona de Convergência Intertropical (ZCIT), um sistema acoplado atmosfera-hidrosfera no Atlântico (Hastenrath e Heller 1977; Hastenrath e Greischar 1993).[4] No entanto, somente nas últimas décadas os pesquisadores da Funceme e do mundo inteiro desenvolveram modelos para fazer previsões quantitativas. Nos primeiros anos de previsão da Funceme, seu monitor climático utilizou indicadores qualitativos, incluindo condições do Oceano Atlântico e do Pacífico, padrões de circulação global e estudos regionais, para visualizar três cenários sem indicar probabilidades: precipitação acima, em torno e abaixo da média histórica (comunicação pessoal, F. L. Viana, 19 de agosto de 2022). Ao longo dos anos 1990 e início dos anos 2000, os métodos de previsão avançaram globalmente, previsões por consensus como norma.[5] A Funceme contribui ativamente para avanços, incluindo o desenvolvimento de previsões climáticas sazonais usando regionalização usando modelos regionais forçando-os por modelos globais em 1998-9 (comunicação pessoal. E. S. P. R. Martins, 25 de outubro de 2022), sendo a primeira previsão operacional lançada em 2001. A regionalização, também chamada de Downscaling Dinâmico, resolve condições meteorológicas em escala global em uma escala mais fina para criar informações climáticas mais detalhadas espacialmente.

A Funceme acabou quebrando convenções ao adotar um sistema de previsão objetiva em 2012 (comunicação pessoal. E. S. P. R. Martins, 25 de outubro de 2022). Ganhou independência na produção de previsões, executando o modelo ECHAM4.6 (um modelo de circulação geral atmosférica) e adotando um hindcast de trinta anos (1981 a 2010) para seus modelos ECHAM4.6 e RSM97. As temperaturas da superfície do mar foram incorporadas ao ENCHAM4.6, e os cenários foram executados para comunicar melhor as incertezas da previsão. Simultaneamente, a Funceme contribuiu para um superconjunto de modelos climáticos nacionais, que ajudou a Funceme a se estabelecer como um líder nacional em previsão.[6] Entretanto, apesar das melhorias nas previsões, não está claro se estas inovações levam a decisões mais informadas. As decisões podem depender não apenas da objetividade da previsão, mas também de fatores como a compreensão dos usuários quanto à incerteza nas previsões, os interesses pessoais ou profissionais e como as informações são aplicadas (Morss et al. 2008).

A comunicação das previsões climáticas

A saliência, relevância, autoridade e legitimidade são decisivas para a utilização das previsões por atores diferentes (Taddei 2008). Por uma parte, a Funceme estabelece autoridade e legitimidade durante as reuniões de previsão usando gráficos que retratam os resultados do modelo de previsão. A visualização de dados é uma ferramenta discursiva para a semiótica social (Aiello 2020), pois os gráficos aparentemente simples substanciam a apresentação das probabilidades de chuva. A complexidade da modelagem, a imensa quantidade de dados atmosféricos e outros dados ambientais e os fluxos das condições ambientais são reduzidos a pepitas digeríveis para não especialistas.

No anúncio da previsão deste ano, o presidente da Funceme, Dr. Eduardo Sávio P. R. Martins, usou uma analogia de pizza para explicar as ansiosamente aguardadas probabilidades de chuvas. A partir de 20 de janeiro, a previsão climática indicava probabilidades de 10:40:50 (10 por cento abaixo da média, 40 por cento em torno da média e 50 por cento de chuva acima da média). Martins pediu o público imaginar essas probabilidades com porções de uma pizza: cortando a pizza pela metade, uma metade representa a probabilidade de 50 por cento de chuva acima da média. A outra metade pode ser divida em porções proporcionais a 40 e 10 por cento, representando as outras probabilidades. Rodando a pizza, uma pessoa pode pegar uma fatia de uma das três opções. Rodando-a novamente, pode-se obter uma fatia de uma outra porção, ou seja, uma outra possibilidade para a estação chuvosa. Martins também enfatizou que os modelos sugeriam alta variabilidade espacial e temporal, abordando as concepções errôneas da Dona Maria e outros. A chuva provavelmente não cairá uniformemente em todo o Ceará ou durante o trimestre.

Dr. Eduardo Sávio Martins da Funceme apontando para um slide de PowerPoint com informações da previsão sazonal indicando probabilidades de chuva de 10 por cento abaixo da média, 40 por cento em torno da média e 50 por cento acima da média. O texto em vermelho afirma que os modelos indicam alta variabilidade espacial e temporal para a precipitação.

Dr. Eduardo Sávio P. R. Martins, presidente da Funceme, apresenta a previsão sazonal do Ceará para os meses de fevereiro, março e abril no dia 20 de janeiro de 2023. A apresentação aconteceu no Palácio do Governador em Fortaleza, Ceará e foi transmitido ao vivo pela Funceme via Instagram.

Orientar percepções sobre as probabilidades durante as apresentações públicas é uma estratégia que a Funceme utiliza para educar seus interlocutores, especialmente a mídia. Nesse sentido, Martins suplicou a aqueles que deveriam comunicar a previsão para garantir que tivessem esses conceitos corretamente explicados antes de publicar: “[P]ara a gente [na Funceme] depois não ter um trabalho muito grande de, digamos assim, de refazer apresentações em outros grupos para esclarecer problemas de comunicação.” Enquanto as previsões da Funceme são compartilhadas via mídia social, incluindo Instagram e WhatsApp, além de jornais e rádio, não há garantia de que sua mensagem completa chegue ou mude a opinião das pessoas no sertão.

Como instituição de pesquisa voltada ao público, a Funceme enfrenta desafios compostos de inovar e comunicar essas inovações de maneiras compreensíveis, úteis e utilizáveis. Ao longo do ano, Martins discute as implicações das previsões e tendências climáticas com outras instituições estaduais. No meio do março desse ano, por exemplo, Martins se reuniu com o governador do Ceará e os líderes de vários órgãos estaduais para determinar as áreas em risco de inundação devido às fortes chuvas. O trabalho de previsão da Funceme também fornece aos técnicos da Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Ceará, Cogerh, uma linha de base para modelar a disponibilidade de água nos reservatórios do Estado. A Cogerh incorpora estas informações nos cenários de alocação de água que concebe para apoiar as decisões tomadas, neste contexto, pelos comitês de bacia hidrográfica, os quais são compostos por representantes do governo, da indústria e da sociedade civil (Lemos et al. 2020).

Funceme, uma instituição estadual, enfrenta o desafio da precariedade a cada quatro anos durante as eleições estaduais. Cada eleição coloca a possibilidade da reconfiguração da SRH e da Funceme. Nas últimas duas décadas, a Funceme experimentou uma estabilidade relativa, um reflexo da competência técnica por Martins, agora em seu décimo sétimo ano como presidente. O futuro da Funceme dependerá de sua capacidade de adaptação a novas lideranças, possível influência política e novos cenários ambientais, diante de climas em rápida mudança.

Reconhecimentos

Obrigada ao Dr. Eduardo Sávio P. R. Martins por seus discernimento, comentários e colaboração no desenvolvimento da pesquisa. Obrigada também ao Dr. Francisco Vasconcelos Junior e a Kim Fernandes por seus comentários úteis em rascunhos da publicação.

Anotações

[1] Individualmente, as estações chuvosas destes anos estão ranqueadas em posições superiores ao 10º ano mais crítico da história de registros sistemáticos, mas a persistência da seca revela uma pegada de seca muito diferente da história. Veja:

Martins, Eduardo Sávio P. R., Magalhães, Antônio. R., and Diógenes Fontenele. 2017. “A seca plurianual de 2010-2017 no Nordeste e seus impactos.” Parcerias Estratégicas 22: 17-40.

Martins, Eduardo Sávio P. R. and Francisco de Chagas Vasconcelos Júnior. “O clima da Região Nordeste entre 2009 e 2017: Monitoramento e Previsão.” 2017. Parcerias Estratégicas 22: 63-80.

Escada, Paulo, Caio A. S. Coelho, Renzo Taddei, Suraje Dessai, Iracema F. A. Cavalcanti, Roberto Donato, Mary T. Kayano, et al. 2021. “Climate services in Brazil: Past, present, and future perspectives.” Climate Services 24: 100276.

[2] Veja também: Taddei, Renzo. 2005. Of clouds and streams, prophets and profits: The political semiotics of climate and water in the Brazilian Northeast. Tesis de doutorado. Columbia University.

[3] As pessoas no sertão também são inundadas com informações sobre a chuva que podem ser contraditórias de várias fontes – de agências nacionais a instituições privadas. Isso representa um desafio para a Funceme manter sua legitimidade entre moradores rurais, que vinculam à Funceme essas informações conflitantes de várias fontes, pois são todas sobre a chuva.

[4] A seca meteorológica durante a estação chuvosa é relacionada a anomalias no sistema atlântico, o que faz com que a Zona de Convergência Intertropical permaneça anormalmente ao norte (Hastenrath e Greischar 1993). A seca meteorológica define-se como níveis de chuva na categoria abaixo da média. Podemos imaginar trinta anos para os quais colocamos a precipitação em ordem crescente e dividimos em três categorias: Os primeiros dez anos (abaixo da média), os últimos dez anos (acima da média), e os dez anos entre estas duas categorias, que representam a precipitação em torno da média. El Niño-Oscilação do Sul (ENSO) e a Oscilação de Madden-Julian (MJO) também influenciam os padrões climáticos em diferentes escalas temporais. Veja por exemplo:

Kayano, Mary Toshie, and Vinicius Buscioli Capistrano. “How the Atlantic Multidecadal Oscillation (Amo) Modifies the Enso Influence on the South American Rainfall.” International Journal of Climatology 34(1): 162-78.

Vasconcelos Junior, Francisco das Chagas, Charles Jones, and Adilson Wagner Gandu. 2018. “Interannual and Intraseasonal Variations of the Onset and Demise of the Pre-Wet Season and the Wet Season in the Northern Northeast Brazil.” Revista Brasileira de Meteorologia 33: 472-484.

[5] Um nível significativo de subjetividade é adicionado quando um grupo de meteorologistas determina uma única previsão por consenso. Neste processo de negociação, as pressões sociais e políticas (por exemplo, a necessidade de estabelecer uma previsão que aplaque os agricultores ou agências estatais) podem impulsionar os resultados. Por outro lado, previsões objetivas são produzidas diretamente a partir dos modelos selecionados, sem um processo de negociação.

[6] O superconjunto incluiu um modelo estatístico para o Brasil (INMET) e quatro modelos atmosféricos globais (um da Funceme e três do Centro Nacional de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos). Outros projetos com significado sóciotecnológico, incluindo o desenvolvimento de um monitor nacional de seca, atestam o caráter inovador e socialmente motivado da Funceme.


Referências

Aiello, Giorgia. 2020. “Inventorizing, situating, transforming: Social semiotics and data visualization.” In Data Visualization in Society, editado por Martin Engebretsen e Helen Kennedy, 49-62. Amsterdam: Amsterdam University Press.

Albuquerque Jr, Durval Muniz de. 1994. “Palavras que calcinam, palavras que dominam: a invenção da seca do Nordeste.” Revista Brasileira de História 14 (28): 111-120. [pdf]

—. 2004. The invention of the Brazilian Northeast. Durham: Duke University Press.

de Souza Filho, Francisco. 2018. Projecto Ceará 2050. Fortaleza (Brazil).

Hastenrath, Stefan, and Leon Heller. 1977. “Dynamics of climatic hazards in northeast Brazil.” Quarterly Journal of the Royal Meteorological Society 103 (435): 77-92.

Hastenrath, Stefan, and Lawrence Greischar. 1993. “Further Work on the Prediction of Northeast Brazil Rainfall Anomalies.” Journal of Climate 6 (4): 743-758.

Lemos, Maria Carmen, Bruno Peregrina Puga, Rosa Maria Formiga-Johnsson, and Cydney Kate Seigerman. 2020. “Building on adaptive capacity to extreme events in Brazil: water reform, participation, and climate information across four river basins.” Regional Environmental Change 20 (2): 53.

Marengo, Jose A., Roger Rodrigues Torres, and Lincoln Muniz Alves. 2017. “Drought in Northeast Brazil—past, present, and future.” Theoretical and Applied Climatology 129 (3): 1189-1200.

Morss, Rebecca E., Julie L. Demuth, and Jeffrey K. Lazo. 2008. “Communicating Uncertainty in Weather Forecasts: A Survey of the U.S. Public.” Weather and Forecasting 23 (5): 974-991

Nelson Donald, R., and J. Finan Timothy. 2009. “Praying for Drought: Persistent Vulnerability and the Politics of Patronage in Ceará, Northeast Brazil.” American Anthropologist 111 (3): 302-316.

Seigerman, Cydney K., Raul. L. P. Basílio, and Donald R. Nelson. 2021. “Secas entrelaçadas: uma abordagem integrativa para explorar a sobreposição parcial e as divisões volúveis entre definições, experiências e memórias da seca no Ceará, Brasil.” In Tempo e memória ambiental: etnografia da duração das paisagens citadinas, editado por Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert, 25-54. Brasília: ABA Publicações.

Taddei, Renzo. 2008. “A comunicação social de informações sobre tempo e clima: o ponto de vista do usuário.” Boletim SBMET: 76-86. [pdf]

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